Por Clara Angélica Porto *
Em janeiro de 1969, pouco depois do criminoso AI-5, eu era uma jovem universitária. Tinha uma coluna diária na Gazeta de Sergipe chamada Vida Social. Como comecei jornalismo pouco antes de fazer 17 anos, convidada por Ivan Valença, papai e Orlando Dantas conversaram e ficou decidido que eu aceitaria o convite, mas nunca pisaria os pés na redação, onde só tinha homens. E assim foi que me tornei a pequena musa da Gazeta.
Todos os dias, por volta das 4 horas, deixava minha coluna no balcão da frente, com Ivan, ou seu Orlando. Ouvia as vozes da redação, do outro lado da parede fina: ‘Ela está aqui!’ Ancelmo Gois, que na época era foca do jornal, encarregava-se de avisar. ‘Ela hoje está de azul… de amarelo…’ Ancelmo ficava olhando pela porta entreaberta que dava acesso à redação. Nino Porto, meu irmão, mandava acabar a saliência. Eu tentava não rir. E seu Orlando me olhava sobre os óculos de leitura com aqueles olhos cor de esmeralda e balbuciava algo inaudível que significava que a coluna estava entregue e está na hora de ir embora.
Eu adorava essa corte diária e saia de lá me sentindo linda e querida. Ezequiel Monteiro, que também tinha olhos de esmeralda, passou a deixar pequenos poemas diários no quadro verde de avisos. Seu Orlando respeitava, Ivan curtia muito e não apagavam, para que eu pudesse ler, afinal era poesia de Ezequiel para a musa do jornal. E assim é que todos os dias, eu ganhava uma estrofe amorosa de Ezequiel, que hoje, lamento não ter anotado. Com o passar do tempo, daria um caderno. Aí Ancelmo, além de anunciar somente ‘ela chegou’, anunciava ‘tá lendo’, ‘tá rindo’…
Hunald Alencar dizia que eu era a cronista que é notícia. Porque eu fazia teatro, organizava festas com Pedrito Barreto, aprontava em Aracaju. Já o pai dele, Clodoaldo de Alencar, dizia que eu escrevia Vida Socialista, pelo teor político da minha coluna. O que eu não sabia era que estava no olho dos militares, que acompanhavam de perto a minha vida, sem a admiração dos colegas da Gazeta.
Seguida pelos golpistas
Eu havia sido convidada por Wellington Mangueira para compor como Secretária de Imprensa a chapa para eleição do DCE encabeçada por João Gama. Ganhamos a eleição, o que logo me colocou na lista negra do 28 BC, e passaram a me seguir diuturnamente, sem que eu percebesse. Seu Ursino Ramos, muito amigo da família, percebeu um Jeep que andava devagar onde quer que eu fosse e ficou desconfiado, mas nada falou, para não me assustar nem a meus pais. Apenas ficou atento e passou a me dar conselhos como nunca sair sozinha de noite.
Em dezembro de 68 fomos veranear na Atalaia Nova, o que foi muito incentivado por seu Ursino, que convenceu papai, que estava relutante, apesar da oferta generosa de Guega (Aglae Fontes), que ofereceu a casa que não iria usar naquele verão.
Em janeiro, atravessei o rio de tó-tó-tó com meu irmão Carlos Henrique, que sempre me acompanhava e cuidava, para vir a Aracaju me matricular na Faculdade. Ao chegarmos na nossa casa da rua S. Cristóvão, fui logo trocar de roupa. Lembro ter escolhido um vestido amarelo que eu gostava muito, e fiz uma trança para domar os cabelos de muita praia e poucos cuidados. Alguém chamou. Eu e Carlos Henrique corremos para o portão de ferro da grande varanda e vimos um senhor careca, moreno alto, que perguntou pela jornalista Clara Angelica. ‘Sou eu, o que deseja?’ O homem disse ‘chame a sua mãe, deve ser ela, você é uma menina’. Retruquei: ‘Não senhor, sou eu mesma. Pode falar’. Então ele me comunicou que eu estava indiciada pelo exército brasileiro e teria que seguir com eles para o 28 BC.
Prazo de uma hora
Carlos Henrique disse que a irmã dele não iria sair sozinha num Jeep com dois homens, que ele estava ali representando meu pai e que eu precisava me matricular na Faculdade. O homem respondeu que eu teria que estar dentro de uma hora no 28 BC. Carlos Henrique disse que iria comigo de ônibus e o homem aceitou, dizendo para não ousarmos não ir, pois eles estavam de olho. Seu Ursino, que também morava na rua São Cristóvão, viu o Jeep passar e o seguiu, compreendendo o que estava acontecendo. Foi à Atalaia Nova e avisou meus pais. Papai, que era amigo de infância do General Djenal Tavares de Queiroz, logo telefonou para ele, avisando e pedindo interferência. O General prometeu ajudar.
Fui de ônibus com Carlos Henrique para o 18 do Forte e subimos a então já famosa colina.
Lá chegando, dois homens já me aguardavam e avisaram a meu irmão que eu seria levada para um interrogatório e ele podia ir embora. Carlos Henrique disse que iria esperar por mim e ficou sentado no galpão, enquanto eu seguia com os homens.
Na sala, havia três homens, um diante de uma máquina de escrever, e mais dois, um dos quais moreno de bigode e que se apresentou a mim como Major Bandeira.
Logo que sentei, de frente ao Major, ele me apontou uma pasta enorme e alta, cheia do que parecia documentos e fotos e perguntou: ‘Sabe o que é isso’? Respondi que não. Ele então iniciou um pequeno discurso de que eu era muito jovem, bonita e inteligente, de boa família e não devia andar com quem não presta. Eu ouvia atenta e calada. O major abriu a pasta e começou a me mostrar fotos onde eu aparecia, ora dançando feliz em festinhas do DCE na faculdade de Química, ora na praia, na piscina da Atlética, comprando maquiagem em A Moda, na faculdade, na posse do DCE.
Depois jogava colunas na minha frente, onde eu defendia igualdade social, liberação da mulher; em uma delas eu defendia maternidade para mulheres que queriam ser mães mas não queriam casar; em outra, eu louvava o conhecimento de história e dialética de Wellington Mangueira; em outra, uma crônica sobre o casamento de meu primo Carlos Cruz com Maria Stael. O major pedia o porque de cada coisa. Na crônica de Carlinhos e Stael, eu encerrava falando da felicidade deles e de como era triste que numa sociedade desigual, nem todos pudessem viver momentos lindos como aquele.
Um tapa no cigarro
Foi aí que o major me ofereceu um cigarro, que aceitei. Um homem veio por trás de mim e deu um tapa no cigarro, antes que eu o tivesse acendido. O cigarro voou longe e meus lábios sangraram um pouco. Fitei o major longamente, calada. Nada disse. Ele não me olhou de volta. E continuou falando como se nada tivesse acontecido. Serviu-me um cafezinho, que deixei ali, na mesa, sem tocar. A um certo momento, não resisti e peguei o café para tomar um gole. Outro tapa fez a xicrinha de plástico voar longe. Dessa vez, atingiu meu dedo mindinho. Um outro homem entrou e falou ao ouvido do major. Não sei quanto tempo havia se passado, algumas horas, pois passamos muito tempo olhando e explicando o dossiê.
A partir desse momento, o major mudou o tom do discurso, e passou a me dar conselhos. Que me limitasse a escrever crônica social, que não falasse de política, muito menos de política estudantil. Que eu era filha de um homem honrado e devia ter cuidado. Chegou até a falar de si e da família e pedir que eu os promovesse no jornal. Eu escutava a tudo calada.
Então ele passou a me perguntar se eu conhecia Wellington, João Gama, Jackson Barreto, Didi Macedo, Alencar e Aglae, uma lista imensa. Eu ia dizendo que sim, que conhecia todos, que Aracaju era uma cidade pequena e todos nos conhecíamos. Ele tentou aprofundar sobre o nível dessas relações e eu, que rapidamente entendi que ele havia recebido um recado favorável para mim (pensei logo em papai e general Djenal), menina de trança com sorriso meigo, desviava e a tudo respondia sem nada dizer. Tornei-me mestra em falar e falar e nada revelar. Sou assim até hoje. Acho que aprendi naquele dia. Ficamos assim horas, ele tentando colher e eu me fazendo de desentendida, fazendo cara de menina.
Assuntos proibidos
Foi aí que ele disse que iria me liberar, mas que ficariam de olho. A partir daquele momento, minhas colunas seriam previamente censuradas e só se publicaria o que passasse. Fez uma lista de assuntos que eu não podia escrever. Quando sai da sala, onde havia entrado umas 9 h da manhã, já eram quase 4 horas da tarde. Encontrei Carlos Henrique sentadinho, a me esperar. Nosso abraço foi intenso.
Voltamos direto para a Atalaia Nova, onde encontramos nossos pais, com seu Ursino ao lado, amigo de verdade é assim. Pediram que eu não falasse sobre o assunto com ninguém, a pedido do general Djenal. Assunto morto, disse papai – é uma ordem! Com o coração em frangalhos, fui para o quarto finalmente chorar e depois, Carlos Henrique me levou para tomar um banho de mar, que foi curativo e libertador.
Ao chegar na Gazeta para deixar a coluna, seu Orlando, grave, me chamou para uma conversa e disse que não era só eu, todo o jornal estava sob vigilância diária e nem uma palavra seria publicada sem censura prévia. Aconselhou-me que desse um tempo sem falar em política e questões sociais, que me detivesse a assuntos sociais e não socialistas e a assuntos culturais. Foi a época que publiquei muita coisa do movimento hippy que começava nos Estados Unidos, e usava arte como metáfora de mensagens.
Panfletos cheirando a álcool
Continuei indo varias vezes com Didi Macedo no fusquinha dela, para as imediações da fábrica do Bairro Industrial às 5 da manhã, distribuir panfletos mimeografados e cheirando a álcool, que a turma executiva clandestina fazia nas caladas da noite. Cobríamos os números da placa do fusca de Didi com fita isolante preta, um 0 virava um 8, cada dia uma invenção. Papai me trancou no quarto para eu não ir para o congresso de Ibiuna, eu havia sido convidada por Wellington. Foi Tina no meu lugar.
Também continuei dando as aulas de Wellington nas escolas públicas dos bairros e era Jackson Barreto quem me acompanhava, levava de ônibus. Enquanto eu dava as aulas, ele conversava com os estudantes levando clareza – os dois ensinávamos, eu dentro e ele, fora da sala de aula. Depois Jackson, um cavalheiro, me deixava na porta de casa, exigência de papai, e caminhava para a casa dele na rua de Estância. Fazíamos tudo por Wellington. Amávamos Wellington, que era nosso grande líder e muito nos ensinava.
Nesse mesmo ano, em setembro, conheci o homem que viria a ser meu marido pouco mais de um ano depois. Ivan Valença um dia escreveu sobre mim, que a repressão me levou a buscar o amor, que acabou me levando para longe.
Mas ficou a marca desse dia. Em todas as minhas memórias de Aracaju, todas lindas, ficou a cara daquele major de bigode, daquele tapa, do gosto de sangue na boca. Ficou o retrato da amargura da ditadura militar no Brasil. O que se passou comigo nada é, comparado aos horrores sofridos por nossos amigos próximos e por milhares de brasileiros.
Não há nada para comemorar.
Ditadura nunca mais!
* É jornalista