Joga limpo, Dilma!
* Por Marcos Cardoso
Não é à toa que os adversários do golpe consideram que os donos do impeachment podem tudo. Dilma fazer pedaladas fiscais não pode, mesmo que todos os antecessores as tenham praticado como regra contábil. Lula assumir ministério? Não pode, isso é trapacear no jogo. Dilma pensar em convocar novas eleições, de jeito nenhum, aí sim, é golpe!
Pode tratar Chico Buarque como um qualquer, pode taxar o governo de comunista, pode pisotear os pobres, pode homenagear o torturador daquela que ainda é a mais alta autoridade do país. Tudo isso vale. O que não vale é espernear, principalmente se for denunciar no exterior que o Brasil é mesmo ainda uma república de bananas.
Essa inversão de valores que transcende a realidade lembra aquela anedota do bravo guerreiro etíope aprisionado pelos soldados romanos. Ele foi levado à arena várias vezes e em todas derrotou os mais bravos lutadores das diversas nações. Um dia, cansado de sentir-se derrotado, o imperador autorizou que ele enfrentasse um leão.
Mas como o guerreiro era muito forte, o imperador ainda mandou que o enterrassem no centro da arena, deixando apenas a cabeça de fora. E assim foi feito.
Quando o leão avistou aquela cabecinha humana no meio daquele pátio de areia vazio, sentiu-se na obrigação de fazer o que a turba ignara e carniceira pedia. Partiu para cima dela com garras e dentes.
O guerreiro, concentrado naquele ataque, preparou-se para a investida do felino e quando o leão se aproximou e tentou abocanhá-lo conseguiu encolher a cabeça de tal forma que o animal selvagem passou babando sobre seus cabelos, mas sem tocá-lo.
Agora, a fera estava atrás. Ele não podia vê-lo, nem podia virar-se, mas podia senti-lo e ouvir a sua aproximação. Mais uma vez quase enterrou a cabeça, e o leão conseguiu apenas feri-lo levemente, para impaciência da galera, que soltou um frustrado uuuuuuh!
Novamente, o bicho faminto estava à sua vista. E quando o rei da selva partiu na sua direção e finalmente o atacou com mais decisão, o etíope fez um movimento tão rápido e tão extraordinário de se desvencilhar, ao mesmo tempo escancarando a boca para usar a última arma defensiva, os próprios dentes, e conseguir morder, com força, os testículos do vigoroso animal.
Sentindo o golpe inesperado, o leão soltou um uivo de dor tão grande como ninguém naquele estádio jamais tinha ouvido. Ao que um senador romano impaciente não se conteve e gritou para que toda a arena agora em silêncio pudesse ouvir: “Joga limpo, negão!”
Nesse estado de quase exceção em que estamos vivendo, o que é jogar limpo?
Golpe de estado, golpe branco, golpe institucional, golpe parlamentar. Dê-se o nome que se quiser dar, mas a elite branca da Avenida Paulista jogou sujo e conseguiu. Quem aguentava mais gente pobre e sem classe tomando conta do Brasil? E pobre soltando pum dento do avião? E se formando em medicina, esse maldito sacrilégio!
Dilma não teve condições de governar um dia sequer desde que se proclamou o resultado do segundo turno, em outubro de 2014. Onde já se viu, ganhar de novo? E tome corrupção eleitoral, pedaladas, lava a jato, delações e ilações.
O Congresso e o Judiciário foram então convencidos de que mudar era melhor para o país. A imprensa oportunista já havia aderido por osmose e dado a sua histórica contribuição. E a volúvel classe média correu para o abraço.
Parece ridículo, e foi, mas a enjoativa votação da Câmara dos Deputados pelo impeachment de Dilma é cheia de significados e escancarou não só os desejos reprimidos daqueles nobres deputados, como também os muitos interesses em jogo.
Agora, a mesma Câmara aprovou o regime de urgência para o projeto de lei que dá reajuste entre 16,5% e 41,47% aos salários dos servidores do Judiciário. Com isso, a proposta entrará, de imediato, nas próximas pautas de votação do plenário. A análise do texto está prevista para ocorrer já nesta semana.
Ao garantir o aumento dos salários do Judiciário o STF confirmou que o jogo não é exatamente limpo. E acabou autorizando o golpe.
* Marcos Cardoso é jornalista, editor do Caderno Mercado do Jornal da Cidade, e autor de “Sempre aos Domingos: Antologia de textos jornalísticos.