Por Marcos Cardoso *
Cleomar Brandi despediu-se dos amigos como um Dante que chega ao limbo, aquele local que não fica no inferno, mas suspenso entre o céu e o mundo dos mortos, onde as almas que não puderam escolher a Cristo, mas escolheram a virtude, vivem o que imaginaram ter após a vida. Ele se retirou recomendando que não lamentassem sua despedida, mas, antes, celebrassem seu nome. Dito e feito. Todos se reuniram, cantaram, dançaram, choraram de alegria. E de lá, do lugar onde estão guardadas as almas justas, ele refez o sorriso malicioso de canto de boca e se contentou.
Cleomar vive enganando a morte. Era atleta, gostava de nadar e mergulhar na Baía de Todos os Santos, tirando polvo na unha – como ele mesmo, orgulhoso, dizia –, quando uma estranha enfermidade o acolheu, deixando-o da forma como o conhecemos, sem mobilidade nas pernas. O irmão Chico Ribeiro me contou que ele aguardava fazer 18 anos para habilitar-se a participar da travessia Mar Grande-Salvador. Naquele tempo, só os maiores de idade podiam arriscar-se na famosa prova de 12 quilômetros.
Abatido por essa incrível enfermidade, que marcaria indelevelmente a sua personalidade, ele passou dois anos prostrado numa cama de hospital, de onde saiu após enganar a morte pela primeira vez. A partir dali, ao contrário de se render ao cruel destino, Cleomar fez da sua deficiência motivo para viver ainda mais intensamente. Estudou, aprendeu a dirigir, disputou corridas de cadeiras de rodas nas ladeiras da Bahia, conviveu com artistas e pescadores na então riponga Arembepe, onde se fez Netuno nas lagoas de água morna, de preferência cercado de suas lobas sensuais.
Apanhou cicatrizes e ensinamentos valiosos. Como o de respeitar a diversidade e prezar as coisas e as pessoas simples. Leitor voraz dos livros que interessa ler, adorava tatear e cheirar o papel – venerava o papel-Bíblia! –, cultivava o salutar hábito de fazer e ler jornal, sabia descer a conversa ao nível moleque de gueto baiano, mas defendia com armadura machadiana a correta aplicação da palavra escrita. “Quem não lê, não escreve”, gostava de repetir aos seus eternos estagiários, como a recitar um mantra.
Cleomar já era tudo isso quando o conheci em 1985 na TV Aperipê. A emissora era nova, ele era um aprendiz de Aracaju e eu um estagiário de jornalismo. Deparei-me com aquele homem de cabelo desgrenhado e barbudo curtindo imagens numa ilha de edição. Ele, claro, tratou-me como se já fôssemos velhos companheiros. Nenhum privilégio, o tratamento era comum a todos. Mas já havia uma reverência ao profissional que foi o primeiro diretor de jornalismo da Rádio Educadora da Bahia.
Depois, além de um pouco de boemia, cruzaríamos nossos destinos profissionais na extinta TV Jornal, afiliada Manchete, e na TV Sergipe, quando efetivamente passamos a gozar uma relação mais próxima. A partir dali eu aprendi com as dores de Cleomar. Era início dos anos 90 quando ele sofreu uma crise de angina em plena redação. Um susto danado! E também foi daquele período a dramática decisão de amputar uma perna, depois de um longo e doloroso processo de necrose iniciado pelo calcanhar. O impávido Cleomar sofreu muito com isso. Mas jamais se deixou abater. Pelo contrário. E enganou a morte mais uma vez.
Fomos colegas no então Centro Editorial e Audiovisual (CEAV) da Universidade Federal de Sergipe, na Praça Camerino, eu já funcionário da instituição e ele convidado pelo querido amigo Jorge Aragão, um irrequieto cidadão da UFS que se tornou gaúcho. Ali montamos uma equipe extraordinária, que contava com Adiberto de Souza, Mônica Dantas, Eugênio Nascimento, dentre outros bons. Ninguém bebia!
Quando teve que amputar a outra perna, e aí já convivíamos numa histórica redação do Jornal da Cidade, ele caçoou: fez a festa de despedida da meia e vivia alardeando que não poria mais os pés em bar nenhum! Coisas de Cleomar.
Um dos momentos mais prazerosos daquela convivência aconteceria nas manhãs dos sábados, quando ele estava de plantão no JC. Sempre chegava muito cedo, invariavelmente vindo direto da boemia, e eu também madrugava no sábado, para escrever a minha coluna dominical – hábito que mantive por muitos anos. “Negão, trouxe uma carne de fumeiro!”, alardeava, todo sorrisos, deslizando sua cadeira pela minha sala de diretor de Redação. A tal iguaria, uma carne de porco defumada da Bahia, frita com muita cebola vermelha, comíamos com cuscuz na cantina do jornal. O prazer dele era convidar a todos para se deliciar da sua prosa fácil e daquele banquete matinal e reparador da noite mal dormida.
Em 2009 ele me presenteou com o convite para prefaciar o seu livro de crônicas, “Os segredos da loba”, lançado em setembro daquele ano com merecido sucesso. O livro não é só erotismo, aliás, longe disso. Há crônicas de densa denúncia social, cravada de poética, pura poesia em prosa à la Baudelaire.
A alegria de Cleomar era contagiante, mas acima de tudo ele possuía uma inteligência refinada e uma sensibilidade apurada para distinguir com o que realmente valia a pena se importar, como valor vital ou como notícia. E possuía um humor afiado como a garra de uma águia. Se esbaldava de felicidade quando destilava venenosos petardos da sua zarabatana certeira a atingir o eventual inimigo. Triste de sua vítima!
Um dia, Cleomar desabafou: “Tive uma vida comum, apenas foi mais difícil. Aprendi o sentido das dores diárias, o alcance, a extensão da crueza que é ter beijado a face enrugada da morte e ter voltado algumas vezes. Estou no mundo e quero cumprir o que determina meu coração, minha vida e minha Fé. Gosto de perceber o mistério das palavras quando escrevo, quando ouço um blues. Continuarei amando as madrugadas e buscando compreender a humanidade. Sou o que faço. Nada mais”. E nem era preciso mais.
Mas foi certamente envolvido por todos esses sentimentos, intercalados por idas e vindas a hospitais, depois que o caranguejo maligno passou a maltratar suas entranhas, quando já previa o que viria pela frente, que ele escreveu a derradeira crônica, “A última saideira”.
No famoso texto, que não é uma declaração de rendição, Cleomar surpreende ao convocar os amigos a, depois do sepultamento, se reunirem no bar do Camilo. A conta já estava paga!
Foi assim que o velho guerreiro, definitivamente, ludibriou a morte. E lá se vão seis anos, num 17 de julho.
* Marcos Cardoso é jornalista, autor de “Sempre aos Domingos: Antologia de textos jornalísticos”.