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A decepção de Frei Betto

Jornalista Marcos Cardoso

“Assistimos ao começo do fim. O PT tende a virar um arremedo do PMDB”. Essa opinião de Frei Betto expressa a decepção do fundador e até pouco tempo atrás um entusiasta do partido. Claro que tem a ver com as decisões erradas, com as mudanças em relação ao rumo que foi estabelecido antes da chegada ao poder, mas embute também um constrangimento pelos desvios éticos.

Neste ano, Frei Betto – o religioso dominicano que, com as comunidades eclesiais de base, ajudou a fundar o PT e, como assessor especial do ex-presidente Lula, coordenou o programa Fome Zero – expressou-se mais de uma vez e de forma muito dura sobre o partido, o governo Dilma e até sobre Lula, de quem é amigo há mais de 30 anos. A presidenta ele conhece desde a infância – “somos da mesma rua em Belo Horizonte”.

Autor de mais de 60 livros, dentre os quais “Batismo de Sangue, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, não é uma voz qualquer. O seu livro mais famoso relata sua experiência nos cárceres da ditadura, descreve os bastidores do regime militar, a participação dos frades dominicanos na resistência à ditadura, a morte de Carlos Marighella e as torturas sofridas por Frei Tito. Premiado com o Jabuti de 1983, “Batismo de Sangue” foi traduzido na França e na Itália e virou filme com o mesmo título, dirigido pelo mineiro Helvécio Ratton e lançado em 2007.

“A questão é que tivemos 12 anos de governo do PT que, na minha avaliação, apesar de todos os pesares – e põe pesares nisso –, foram os melhores da nossa história republicana, sobretudo no quesito social. Efetivamente, 36 milhões de pessoas deixaram a miséria. Hoje, os aeroportos deixaram de ser um espaço elitista. Se vamos em um barraco de favela, lá dentro tem TV a cores, micro-ondas, máquina de lavar, fogão, geladeira, telefones celulares, talvez um computador e, possivelmente, no pé do morro, um carrinho que está sendo comprado em 60, 90 prestações mensais. Porém, essa família continua no barraco, sem saneamento, em um emprego precário, sem acesso a saúde, educação, transporte público e segurança de qualidade. O governo facilitou o acesso dos brasileiros aos bens pessoais, mas não aos bens sociais”, disse, em março, para a jornalista Sonia Racy, do Estadão.

O que faltou, segundo ele, é que nos últimos 12 anos não aconteceu nenhuma das reformas prometidas nos documentos originais do PT. Nem a agrária, nem a tributária, nem a política, nem a da educação, nem a urbana. “Em suma, o que falta ao governo – e desde 2003 – é planejamento estratégico. (…) O PT trocou um projeto de Brasil por um projeto de poder. Permanecer no poder se tornou mais importante do que fazer o Brasil deslanchar para uma nação justa, livre, soberana e igualitária. Como é que um governo que pretende desenvolver a nação brasileira cria um ministério que eu qualifico de coral desafinado? O que tem a ver Joaquim Levy com Miguel Rossetto? Kátia Abreu com Patrus Ananias? José Eduardo Cardozo com George Hilton?”

“Todo o governo opera agora em função de um detalhe, não de um projeto histórico, que é o ajuste fiscal. E penalizando os mais pobres, não o capital”, afirma Frei Betto, acrescentando como erro grave do governo do PT – tendo sido construído e consolidado pelos movimentos sociais – ter preferido, ao chegar ao Planalto, assegurar sua governabilidade com o mercado e com o Congresso e escantear os movimentos sociais. “O PT ficou refém desse Congresso, dependendo de alianças espúrias.

Agora, o seu grande aliado, o PMDB, se rebela, cria – com o perdão da expressão – uma cunha renana para asfixiar o Executivo. Se alguém me pergunta “qual é a saída”? É o PT ser fiel às suas origens. Buscar a governabilidade pelo estreitamento de seus vínculos com os movimentos sociais. Ou seja, o segmento organizado, consciente e politizado da nação brasileira. Fora disso, tenho a impressão de que estamos começando a assistir ao começo do fim. Pode até perdurar, mas o PT tende a virar um arremedo do PMDB. Creio que cabe hoje, ao governo, fazer uma autocrítica séria”.

Frei Betto evita crítica direta a Lula, mas numa entrevista à revista Cult, em maio, ele crava como erro do Lula “ter facilitado o acesso do povo a bens pessoais, e não a bens sociais – o contrário do que fez a Europa no começo do século 20, que primeiro deu acesso à educação, moradia, transporte e saúde, para então as pessoas chegarem aos bens pessoais”.

E num artigo neste mês, no jornal O Dia, intitulado “É hora de esperança”, ele toca na questão da corrupção, mas acusa a Operação Lava Jato de ser samba de uma nota só. “A Operação Lava Jato presta excelente serviço à nação. Leva corruptores à cadeia e traz à luz bilionárias somas de recursos públicos destinadas a favorecer interesses privados. Mas por que a Lava Jato é um samba de uma nota só? Será que houve corrupção apenas no governo do PT? E por que o Judiciário permite o vazamento de depoimentos especificamente centrados no PT? Algum diretor de revista anda corrompendo investigadores da Lava Jato para obter o conteúdo dos depoimentos dos réus antes que cheguem à Justiça?”

O fato, diz ele, é que se criou, no Brasil, um clima de amargura e ódio. “Amargura, porque Dilma prometeu na campanha o contrário do que faz agora: não tocar nos direitos dos trabalhadores. O ajuste fiscal desajusta as conquistas obtidas nos últimos 12 anos. Estão de volta a recessão, os juros altos, a inflação e, em consequência, o desemprego, a retração da indústria e o fechamento de lojas. Após 12 anos de avanços, o Brasil dá marcha a ré. O ódio resulta da falta de consciência política. Quando não se consegue racionalizar uma experiência traumática, o ódio emerge. Por isso se procura terapia quando as emoções são embaralhadas pelo ódio. Ou se busca uma ‘saída’ no gesto vingativo: o jovem branco que, em nome da supremacia ‘ariana’, extermina negros em uma igreja, ou o Exército Islâmico que, em nome de Deus, degola inimigos…”

Ele encerra o artigo lembrando que o PT promoveu a inclusão econômica de milhões de brasileiros, mas se omitiu quanto à inclusão política. “Não politizou a nação. Não organizou os trabalhadores. Não fortaleceu os movimentos sociais. Ao contrário, estimulou o sonho consumista. (…) Resta à sociedade civil descruzar os braços e não esperar dos políticos no poder. É hora de arregaçar as mangas e reorganizar a esperança. Com meros protestos não sairemos dessa depressão cívica. Há que ter propostas. O Brasil soube dar a volta por cima diante de muitos períodos críticos, tanto na monarquia quanto na República. Precisamos deixar de lamentar e articular em especial os jovens e os movimentos sociais.”

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