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A literatura sergipana está viva — e tem humor

(Texto publicado na revista Cumbuca Nº 26, março de 2020)

A literatura sergipana está viva, provocando sensações, produzindo efeitos estéticos e nos permitindo compreender melhor as verdades da condição humana. Nos últimos anos, novos e velhos autores venceram o medo da exposição pública e tiveram coragem de lançar aos livros a originalidade de suas criações literárias.

Originalidade, sim, aquilo que Arthur Schopenhauer (1788-1860) definiu com lirismo: “Os eruditos são aqueles que leram coisas nos livros, mas os pensadores, os gênios, os fachos de luz e promotores da espécie humana são aqueles que as leram diretamente no livro do mundo”.

Depois que foi profetizada a morte do livro, parece que as editoras proliferaram. Na grande Aracaju, existem hoje a Editora UFS, a Editora Universitária Tiradentes, a Infographics, as gráficas que produzem livros e outras. Mas duas editoras estão na vanguarda dessa onda que mantém o movimento no mundo das letras e atiça o desejo de tornar conhecidos os que escrevem: a Edise, editora oficial do Estado, presidida por Ricardo Roriz e dirigida por Milton Alves, e a Criação Editora, da expedita programadora visual Adilma Menezes.

A Edise publicou 24 livros em 2019, sendo que a maioria dessas obras são textos de não-ficção, poucos de literatura. Ainda assim dois títulos literários merecem referência: o muito aguardado “A vida me quer bem — Crônicas da vida sergipana”, de Amaral Cavalcante, e “O tatu de Pirakê”, do contista revelação Djenal Gonçalves Filho. Um ano antes, é imperativo mencionar, a Edise lançou o segundo livro de contos de Zeza Vasconcelos, “Suíte dos viventes”.

Já a Criação Editora publicou impressionantes mais de 60 livros no ano passado, mas igualmente pouca coisa no campo literário, como o livro de crônicas “Ranhuras do tempo”, do também poeta Inácio Loiola. Mas merece destaque um romance, “O caderno de Tântalo”, de Augusto de Melo, um veterano escritor, inédito até então.

A vida me quer bem

Há uma marca em comum nessas obras, além da originalidade: o humor. As crônicas de Amaral convidam à felicidade, o bom-humor respira dos episódios mais comezinhos narrados sem pieguice e nos tipos caseiros descritos sem piedade. Talvez não seja coincidência que Djenal bordeje seus contos com pérolas de graça e pílulas de sorriso. Um é mestre e o outro é discípulo.

Tomo emprestado o prefácio de Jeová Santana para advertir que os textos de Amaral Cavalcante vão muito além do humor: “À leveza e à concisão, marcas proeminentes na crônica, Amaral ainda acrescenta o humor. Este advém tanto dos episódios quanto dos muitos tipos que atravessaram sua vida, quanto do próprio estilo, no qual incluem-se a valia do registro oral, a adjetivação equilibrada entre a imponência e o escracho, as pinceladas de poesia (‘Teimosa, só brota quando a chuva é festa na mata e, na aguada, o sapinho de rabo anuncia — danado de contente — que lá vem fartura de Deus molhando a plantação. Ploc, Ploc, o olho verde perruche espia’), o modo como articula as frases, a predisposição de tirar o leitor de sua zona de conforto e colocá-lo no redemoinho da cena — como se sabe, nesta última, foi useiro e vezeiro certo Machado de Assis.”

Suíte dos viventes

Já Zeza é de um sutil sarcasmo. Os contos deste “Suíte dos viventes” diferenciam-se dos textos daquele “O herbanário de tia Finha e outras curtas estórias”, de 2016, pelo humor embutido na situação mais dramática. É como ouvir uma boa piada no velório. Se lá é impossível não rir da circunstância, por aqui a cena beira a tragicomédia. Veja-se o conto “Atire a primeira pedra”:

“Agora estava só. Num ímpeto de raiva, quebrou todos os porta-retratos onde apareciam fotos do casal nos diversos lugares em que tinham viajado — resorts, ilhas paradisíacas, estações de esqui — em sucessivas luas de mel. Pegou seu revólver que estava guardado há muito tempo no guarda-roupa. Rodou o balão e deu um tiro no quadro da Santa Ceia, pendurado na parede da sala de jantar. Acertou em Judas”.

Os contos de Zeza estão impregnados de cotidiano, beirando o banal, por vezes resvalando na crônica. Problemas familiares, quase rodrigueanos, entremeados de perturbadores dramas de consciência. Há humor, há poesia e, mais importante, há verossimilhança. Às vezes ele flerta com o realismo fantástico, mas nada do que escreve contraria a verdade. Como convém a qualquer boa obra de ficção. E as possíveis previsibilidades são superadas pela sutileza dos desfechos, arrematados quase sempre por genuínas surpresas.

Zeza Vasconcelos, nome artístico do médico José Vasconcelos dos Anjos, também é autor de um romance, “Sara”, de 2017, e já tem no prelo novo livro no mesmo gênero.

O caderno de Tântalo

O humor no “O caderno de Tântalo”, de Augusto de Melo, está nos gestos e atitudes do protagonista, Abílio Marafuz. É um romance farsesco e epistolar, nesse caso monológico, obra composta pelos textos do diário do personagem-narrador, um gráfico aposentado que vive entre a capital e quase recluso no sítio em Laranjeiras.

“A criatividade e o tom de sátira permeiam a narrativa. O autor retrata, entre outras coisas, a Aracaju dos idos de 1990, apressadamente ocupada por prédios residenciais, para tratar de um ‘intrigante’ segredo: quem escolhia os nomes pomposos de todos esses prédios?”, indaga a professora Denise Gaujac, que assina a orelha do livro.

“Abílio Marafuz veio para ficar e já tem um cantinho reservado na galeria de personagens da nossa literatura. Não há como esquecer do seu suplício e da sua obsessão por conhecimento através da leitura e, principalmente, amor ao livro. Pode até ser um amor meio torto, safado, mas amor ao livro. No fundo, uma maneira bem-humorada de se homenagear o livro impresso”, observa o professor Herivelto Couto, que apresenta o romance de estreia de José Augusto Melo de Araújo, o também professor, agora Augusto de Melo, o escritor.

Escrevem porque pensam

Assim como Amaral Cavalcante, os escritores Zeza Vasconcelos e Augusto de Melo também leram no livro do mundo e enxergam além dos limites da aldeia. Alguém se habilita a ser um Amando Fontes, um Hermes Fontes, Gilberto Amado, Genolino Amado, Alina Paim, Nélson de Araújo, Mário Cabral, Francisco Dantas, Antonio Carlos Viana? Quem sabe?

A originalidade é exigência da caminhada e isso evoca, de novo, o rigoroso Schopenhauer: “Há três tipos de autores: em primeiro lugar, aqueles que escrevem sem pensar. Escrevem a partir da memória, de reminiscências, ou diretamente a partir de livros alheios. Essa classe é numerosa. Em segundo lugar, há os que pensam enquanto escrevem. Eles pensam justamente para escrever. São bastante numerosos. Em terceiro lugar, há os que pensaram antes de se pôr a escrever. Escrevem apenas porque pensam. São raros.”

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