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A morte da agenda velha

* Por Amaral Cavalcante

(Sobre o assassinato da agenda que desde 2001 me acolita)

O assassino sou eu, monstro passional rasgando nas entranhas as provas de um passado incômodo. Marido bêbado que ama, mas renega, só me restou matá-la.
Doeu, claro que doeu, mas eu tinha o direito de me livrar de tantos mortos guardados, apontamentos que não deram certo, telefones mudos, segredos em letras miúdas sem mais mistérios que os justifiquem. Encontros detestáveis, armações frustradas, anotações vergonhosas que eu quero esquecer,esse lixo de vida acumulado em suas páginas.

Essa agenda, quando menininha, cheirava a sândalo e estalava ao manuseio. Folha após folha, um cabedal de possibilidades: o dia virgem de obrigações na página seguinte onde o futuro se podia anotar. Linda, portátil, trazia um fitilho azul caindo pelas bordas. Ela seria o cofre dos meus segredos, a esposa ideal que recobrisse sob a capa de pelica os mistérios do meu dia-a-dia.
Amei de cara, casei legal!
Cheguei a dormir com ela sob o travesseiro. Que guardasse também o lusco-fusco dos meus sonhos, a avenida sem fim que se esvai de manhã, com suas complicadas geografias.

Mas era um casamento datado! No seu próprio lombo, gravado a ferro e fogo, o vaticínio: 2001. Tinha data para acabar! Eu é que estiquei o seu tempo, acostumado ao seu conforto como um “filho de santo” que entrega ao “guia” as responsabilidades do seu dia-a-dia.
Dependente dela fui indo adiante, sete anos voltando à suas páginas, obediente e fiel.

Então, ela foi engordando. Disforme, o ventre atabalhoado por dezenas de papeizinhos e galhos de arruda, pétalas secas, santinhos milagrosos, folderes de pizzarias com promoções irrecusáveis, toda sorte de lembranças que me conveio guardar. Ficou balofa, atrapalhada, e, finalmente, parou de suportar minhas conveniências.
Posta sobre a cômoda, virou um adereço doméstico, incômoda guardiã de segredos inúteis, prenha de assombrações e lástimas. Matei-a
Mereço perdão?

Amaral Cavalcante é jornalista, poeta e cronista de mão cheia.

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