Lelê Teles *
Muitas dessas mulheres têm filhos, umas têm esposos, algumas têm namorados, boa parte delas são arrimo de família e mandam o dinheirinho contado para uma avó doente no interior, outras sustentam os machos parasitas que fingem que as protegem enquanto as espancam.
“A mulher-sujeito é a antítese do homem abjeto” Lelê Teles
eu, thula, volto a falar de mim e das que estão à minha volta, porque se eles vêm de irmãodade a gente vai de irmandade.
molha tua taça e vem, falemos das putas.
confinadas e sem amparo, as prostitutas mostram como o patriarcado é cruel e hipócrita.
não, nenhum cliente quer saber se precisam de uma cesta básica enquanto estão impedidas de trabalhar; ninguém lhes é solidário em sua solidão.
aqueles que comem as putas nem se importam se as putas comem.
sim, falemos de fome, porque esse é o nome.
não digo a fome do homem, esse insaciável desejo do comer metafórico, que deixa claro a visão da mulher como um pedaço de carne.
falo da fome do estômago, esse órgão sensível que, também metaforicamente, tem boca, e que só fala quando não mastiga: “góioioióió…”
daqui, do conforto da minha varanda, onde beberico taças de vinho, eu sempre observo o movimento das meninas lá embaixo, no trottoir.
na penumbra da comercial, elas fazem ponto, seminuas; um frio desgraçado e elas lá, com pernas, busto, bunda, barriga, ombros… tudo de fora.
às vezes, na solidão da madruga, desço pra conversar com elas; já tivemos deliciosas noites gargalhosas.
mas nem tudo é riso, nem tudo é alegria; há lágrimas escorrendo na face do palhaço, é que a maquiagem oculta.
nessas minhas descidas para papear, muitas vezes fui divã de divagações e devaneios tristes, já fui ombro de escombros d’alma, já fui o regaço quente e confortoso de cabeças chorosas…
a mulher, quando confia na outra, desaba.
na minha condição de privilegiada, de quem não vai perder o emprego por conta do coronga, que vai continuar recebendo o salário trabalhando em casa, penso nas sista que sumiram por esses dias.
onde andarão, como estarão se virando?
muitas dessas mulheres têm filhos, umas têm esposos, algumas têm namorados, boa parte delas são arrimo de família e mandam o dinheirinho contado para uma avó doente no interior, outras sustentam os machos parasitas que fingem que as protegem enquanto as espancam.
muitas ainda têm que prestar contas do pouco que ganham com algum rufião da esquina, com o cafetão dono da pousada, com a cafetina do cabaré…
e ainda têm essas roupas de pouco pano pra comprar, a maquiagem, o cabelo, as unhas, os saltos, os cigarros e as drogas pra suportar o cansaço e o desaforo de alguns cretinos suados que não escovam os dentes e nem lavam o pau direito.
né fácil, não fia!
sei que muitas delas nem têm casa, moram nas pousadas e hotéis onde trabalham, e sofrem com a ameaça de despejo.
as que pagam aluguel e vivem amontoadas com as colegas, para tentar juntar algum trocado, também sofrem a ameaça do despejo.
e, sem trabalho, falta o pão do dia-a-dia; já acabou até o do miojo.
pensar no glamour da garota de programa de luxo, da sugar baby cheia de presentes de homens endinheirados é deixar-se levar pela fantasia.
as prostitutas e travestis são, em sua grande maioria, trabalhadoras exploradas, cujos serviços, em grande parte, se resume em ser xingadas e humilhadas por canalhas na cama, a troco de poucos trocados.
e é um paradoxo, uma vez que muitas delas estão nessa vida porque cansaram da fome no município insípido, enjoaram da vida dura e sem retorno, não suportaram mais apanhar dos pais, dos padrastos, dos namorados e ganharam o mundo.
ganharam o quê com isso?
sabia que nas famosas red lights de amsterdam você dificilmente vai encontrar uma holandesa?
elas são, as que se exibem nas vitrines iluminadas, mulheres pobres do leste europeu, ou asiáticas e latinas iludidas com uma vida futura com algum no bolso; o macho branco, você bem o sabe, traz consigo esse prazer atávico de violar mulheres de outras culturas; seus ancestrais sempre o faziam quando invadiam um país estrangeiro.
o tráfico e o sequestro de mulheres para serviços sexuais é uma forma de escravidão.
mas voltemos à fome e à vontade comer.
os homens lamentam que as prostitutas tenham sumido das calçadas, confortam-se com as punhetas guiadas dos serviços sexuais virtuais, mas continuam não se importando se tem ou não uma mulher por dentro daqueles corpos, se sentem frio ou se sentem fome.
a reificação, a objetificação da mulher que trabalha como profissional do sexo, fica mais visível nesses tempos doentes e amendrontosos.
por onde andam, como estão se virando para comer e pagar aluguel, como estão alimentando os filhos?
quem se importa?
palavra da salvação.
* Formado pela Universidade de Brasília, é jornalista, roteirista e publicitário. É roteirista do programa Estação Periferia (TV Brasil) e da série De Quebrada em Quebrada (Prodav 09). Sua novela, Lagoas, foi premiada na Primeira Bienal de Cultura da UNE. Discípulo do Mestre Cafuna, prega o cafunismo, que é um lenitivo para a midiotia e cura para os midiotas.