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Reflexões sobre a morte

Por Lelê teles *

“filosofar é aprender a morrer”, sócrates.

tava aqui pensando: isolamento social, máscaras, álcool em gel, água e sabão.

nunca foi tão fácil evitar a morte, não é mesmo?

penso nisso observando meu vizinho a higienizar tudo à sua volta.

enquanto besunta maçanetas e mobílias com doses exageradas de álcool em gel, ele fuma 20 cigarros por dia.

é uma escolha, prefere morrer de enfisema que de coronga.

veja essa outra imagem: um sujeito, voluntariamente isolado em casa, na ânsia de curar o tédio, tomou todas as cervejas que tinha na geladeira e depois saiu pra comprar mais, bêbado e cantando pneu.

bateu com o carro num poste, na esquina de casa, e morreu na hora.

tava usando uma linda máscara de flanela xadrez, bem ajustada e feita com todo cuidado pela vó zelosa.

agora veja mais essa: “passa o celular, senão eu espirro”, grita o trombadinha.

a garota, em desespero, entra em luta corporal com o sem-camisa. esparra e espera o esporro do espirro, mas não solta o objeto.

afinal, de que vale viver seu o seu iphone x, né isso?

dito isto, digo mais.

a morte, hoje, é manchete em todos os jornais, tema de conversas na mesa do jantar, está na ordem do dia, é o novo estado da arte, o zeitgeist evocado por um vírus invisível.

o humano, é sempre bom lembrar, é o único animal que têm consciência da morte, porque têm consciência da vida.

ah, mas o veado corre do leão porque sabe que vai morrer; dirás.

sim, mas isso é o que o edgard morin chama de morte-perigo. é um medo atávico e inerente, é uma fuga instintiva, impensada.

os animais em fuga não estão a defender a vida, estão apenas a evitar a morte.

nós, que criamos até um dia de finados, sabemos que para morrer basta estar vivo.

por isso, inventamos os mais variados ritos fúnebres para aliviar a perda de quem vai, esse é o consolo de quem fica: cremam, enterram, escondem, choram, dançam com o caixão, comem o corpo, mumificam…

a única morte para a qual ainda não inventaram um remédio para o vivo é a morte do(a) filho(a).

língua nenhuma no mundo sequer ousou criar uma palavra para conceituá-la; sem significante e, portanto, sem significado!

no entanto, a morte coletiva é que é o nosso maior temor.

a imagem de centenas de corpos sendo levados por caminhões, as covas abertas para a inumação de muitos cadáveres, lado a lado, é de partir o coração.

sentimos o mesmo quando vemos imagens das guerras.

sentimos a mesma paúra quando vimos surgir a aids e com as pandemias de ebola e sars.

sofremos juntos com as vítimas da boate kiss, do bataclan francês, do world trade center.

tem gente que chora até por pensar que um meteoro possa ter dizimado os dinossauros. porque matar umas vacas, umas galinhas, pescar uns robalos, tudo bem; mas dizimar?

perceba que a fome, a bala perdida, a execução sumária de favelado, o colesterol alto, o excesso de sal, o feminicídio, os atropelamentos e as batidas de automóveis, tudo isso nos é “vendido” como mortes individuais.

com essas, estamos programados a nos conformar.

só não nos programaram a nos conformar com a vida; por isso, tantos divãs, tantas farmácias, tantos botecos e tantos puteiros.

“eu bebo sim, estou vivendo, tem gente que não bebe é está morrendo, eu bebo sim…”, canta o meu vizinho asséptico, acendendo mais um cigarro sem filtro.

palavra da salvação.

 * Formado pela Universidade de Brasília, Lelê Teles é jornalista, roteirista e publicitário. É roteirista do programa Estação Periferia (TV Brasil) e da série De Quebrada em Quebrada (Prodav 09). Sua novela, Lagoas, foi premiada na Primeira Bienal de Cultura da UNE. Discípulo do Mestre Cafuna, prega o cafunismo, que é um lenitivo para a midiotia e cura para os midiotas.

 

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