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A noite das viúvas do homem vivo

Por Lelê teles *

cada vez que entrava um cliente, o tranca-porta tocava o berrante, dando boas-vindas ao forasteiro.

uma dupla de sertanejos urbanos sertanejava no palco um lamentoso rosário de chifres, abandonos e alcóvicas frustrações.

cachaceiros e cachaceiras se encachaçavam despudoradamente.

apesar das ruas vazias, o bar tava cheio.

pelo salão, estranhamente decorado de verdeamarelo, arrastavam-se sombrios trapos morais e andrajosos molambos humanos.

onde falta amor, farta cachaça.

a máscara de todos já havia caído; portanto, ali, os zumbis zambetas zombavam do vírus virulento; se carpiam e se cuspiam.

com o cotovelo no balcão e de costas para o palco, unhas vermelhas como a língua do capeta e rubros lábios em brasa, exibindo um choro sorridente, a namoradinha do brasil tomava uma forte talagada de rabo-de-galo.

“então, eu e o bolsonaro começamos um namoro, um namorico, que virou noivado, com promessa de casamento…” a doida falava com um retrato de gustavo bebiano, pendurado na parede.

“tudo público, às vistas de todos, o brasil assistindo ao vivo aos galanteios daquele manipulador. larguei a globo, briguei com amigas, fechei os ouvidos para os filhos e fui pra brasília… tava apaixonada pelo poder que emanava daquele homem, você entende, né? como diz o poeta, o poder é o viagra das piriguetes.”

ébria, ela parecia ver o fotografado concordar com ela, meneando a cabeça afirmativamente na fotografia, com aquele sorriso bebiânico.

“aí, numa bela manhã de sol em brasília, sem mais nem menos, ele me dispensou, às portas do palácio residencial, na frente das câmeras… e isso, minino, depois de eu ter feito uma declaração de amor a ele, ao vivo na cnn brasil, debochando dos que morreram. quer maior declaração de amor que essa? kkkkk”, gargalhou smartphônicamente.

“ora, ora, ora, se essa não é aquela que foi sem nunca ter sido. falando sozinha?”, perguntou roberto alvim, com aquela cara nazocínica e com um copo de bloody merry nas mãos.

sentou-se ao lado da talarica que lhe substituiu, olhou para a fotografia de bebiano e falou: “sorte dele que chifre não sai em fotografia. coitado, esse sofreu tanto que o coração não aguentou. quem não bebe, não afoga as mágoas e acaba por se afogar em lágrimas”, filosofou. “pra mim, uma relação, ou é imperativa ou não é nada”, concluiu.

enquanto os três se olhavam, em triste silêncio, no palco, a dupla grafeno e nióbio cantava “maldita cloroquina”, seu hit do momento.

“fizemos um ménage em homenagem à pátria livre/ éramos sua obsessão/hoje, abandonado em canto triste/ canto a dor da traição/ essa loira de farmácia/talarica cloroquina não perde por esperar/sua hora vai chegar/ ah, ah ,ah, ele também vai te largar/ ô, ô, ô, sentirá a nossa dor…”

a corrupção, cheia de curvas, metida num chamativo vestido vermelho e fumando um cigarro com uma piteira longa, nem chorava, nem sorria por ter sido abandonada. puta velha, sabe que nunca lhe faltará clientes; estava ali à espreita do primeiro que lhe colocar um dólar na calcinha.

na mesa dos generais exonerados, o general santos cruz, sóbrio e carrancudo, olhava pra diaba de vermelho e fingia não vê-la.

som de berrante, entra o ex-senador magno malta com aquela indefectível cara de ressaca e a cabeleira de cantor brega.

pede um uísque duplo, cowboy, e vai se sentar na mesa de joice e frota.

sem tirar os olhos do palco e enxugando as lágrimas, joice estende um lenço a malta, que prefere deitar a cabeça no ombro alexandrino.

todos cantam juntos o ridículo refrão que falava sobre um supositório de cloroquina do tamanho de um cometa que curava hemorroidas.

numa mesa ao lado, decorada com um baldinho de puro malte artesanal, o pequeno kim dividia uns finger foods com os youtubers nando moura e mamãe falei.

discriminado, sozinho numa mesa de canto, fernando holiday (“sabia que ele era um jumento”) olhava com inveja para a foto sorridente do mito ao lado do palmárico sérgio camargo e do papagaio de pirata hélio negão, o uncle tom.

“o que eles tem que eu não tenho?”

indiferente à balbúrdia interior, lá fora o berrante berra novamente.

sergio moro cai pra dentro, acompanhado por raquel dodge e rodrigo janot, o assassino de fantasmas, o ex-procurador que procurou briga com gilmar mendes e ficou latindo sozinho no pátio.

“habeas copus”, gritou moro, e o garçom trouxe três tequilas para os corvos que sorveram o líquido de cactos numa talagada.

“pra mim ele morreu”, falou sérgio moro, colocando o copo na mesa; cabeça baixa, pica mole.

“se ele não tivesse morrido pra mim, juro que eu o matava, atirava com a mão esquerda mesmo, reagiu o delirante janot, o janota, limpando as fuligens de cigarro do paletó engomado.

a lista de convidados para as viúvas do homem vivo era enorme.

um garçom lustra-cornos esfregava uma flanela nos chifres de marcello reis, o revoltado off-line, que afogava as mágoas do esquecimento e do ostracismo. “quem te viu, quem te vê”, falava o lustra-cornos.

ao fundo, perto do banheiro, o cercadinho reservado aos profissionais da imprensa tava lotado. quando o garçom vinha limpar a mesa, os jornalista diziam: “não, pode deixar que a gente passa o pano aqui”.

a dupla sertaneja termina sua apresentação e é aplaudida a cascos.

toca o berrante, entra lobão, bêbado como um gambá e gritando o que ouvia, ultraje a rigor nos fones de ouvido: “inúteu, nóis somos todos inúteu…

ouvindo o hino bolsomínico, os presentes se abraçam e começam a pular no salão, numa grande roda de ciranda, todos cantando: “inúteu, nóis somos todos inúteu…”

palavra da salvação.

* Formado pela Universidade de Brasília, Lelê Teles é jornalista, roteirista e publicitário. É roteirista do programa Estação Periferia (TV Brasil) e da série De Quebrada em Quebrada (Prodav 09). Sua novela, Lagoas, foi premiada na Primeira Bienal de Cultura da UNE. Discípulo do Mestre Cafuna, prega o cafunismo, que é um lenitivo para a midiotia e cura para os midiotas.

 

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