Por Antônio Samarone *
Em tempos de cólera, fui visitar o Cemitério de Nelito. Dizem que lá, está sepultada a última vítima de varíola em Aracaju. Fui saber se a sepultura ainda existia. Ninguém sabe onde foi, mas todos ouviram dizer.
O medo maior dos que morrem da Peste é um sepultamento desonroso, numa vala comum. Sem choro nem vela, sem rezas nem lamentos.
A maior infelicidade que se pode desejar a um inimigo, é que “a Peste lhe carregue”. O medo atávico não é da morte, mas de ser carregado pela Peste.
No cemitério de Nelito, todos são enterrados dentro do ritual cristão. Todos têm o direito a flores na sepultura, mesmo que silvestres. A família e os amigos têm direito ao consolo.
Para minha surpresa, encontrei num túmulo abandonado no Cemitério de Nelito, a inscrição do lema da Liga Hanseática: ‘Navigare necesse est, vivere, non necesse’. Assim mesmo, em latim. Não identifiquei de quem era a cova.
A Peste mata sem direito ao consolo. Não tem velório. Quando agredimos alguém: “que o diabo o carregue!” O diabo é a Peste.
Seu Nelito, era o dono do único cemitério da localidade. Ele já morreu, mas continua Cemitério de Nelito. O terreno era dele. Nem a religião, nem o estado cuidam da morte por aqui. A morte é parte da vida privada.
O cemitério não é de ninguém, ou seja, é de todos. Quem toma conta é o coveiro, Seu Gileno (já idoso).
Não digo o nome da comunidade, com receio de que a prefeitura queira tomar conta. O Cemitério de Nelito, ainda é um Campo Santo.
Ninguém crê em sua própria morte. No fundo, no inconsciente, cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade.
Só a esperança na imortalidade da alma pode servir de consolo para morte. Nelson Rodrigues caluniava a teologia da libertação, dizendo que ela tinha acabado a imortalidade da alma.
O meu pai só passou a acreditar que era mortal bem idoso. Ouvi dele no final da vida, uma revelação: “Mudei de opinião, parece que não vai ter jeito, vou morrer!”. Como o senhor descobriu? “Quase todo o dia passa um enterro aqui na porta”. Ele morava no caminho do cemitério.
“O homem das épocas pré-históricas sobrevive inalterado em nosso inconsciente. Não existe nada de instintual em nós que reaja a uma crença na morte. Talvez isso seja o segredo do heroísmo”. – Freud.
A certeza da finitude não é inata, não se nasce sabendo. Sabemos da morte por ouvir dizer. Os animais só descobrem que vão morrer na reta final, quando o risco é iminente.
Ontem Eu assisti a uma cena curiosa. O gato aqui de casa, para honrar a valentia dos felinos, começou a perseguir um calango. Eu agi em defesa do mais fraco. Fiquei vigiando o gato, para ele não cometer o assassinato. No primeiro descuido, tá lá o calango abatido, de papo para cima, e o gato imponente com a pata sobre a vítima.
Avancei para punir o gato, mas ele fugiu. Fui pegar o calango para realizar o sepultamento, quando segurei no rabo do bicho, ele estava vivo. Ele se fez de morto, para enganar o gato. Fiquei pensando, quando o calango foi apanhado, descobriu que ia morrer e se defendeu com a astúcia. O calango que levou a vida se achando imortal, ali, na boca do gato, ficou sabendo da existência da morte.
Em boa parte, temos a mesma consciência dos calangos.
Quando morre uma pessoa conhecida, ficamos surpresos com a notícia. Morreu de quê? Esperamos uma causa inesperada, acidente, doença, infecção, tentando reduzir a morte a uma eventualidade. Não aceitamos com naturalidade, como a ordem natural das coisas.
Qual o consolo para a morte, além da crença na imortalidade da alma?
A Fala de Ulisses, no sepultamento de Aquiles:
“Pois desde outrora, quando estavas vivo, nós os aqueus te honrávamos mesmo como a um deus, e agora que estás aqui, governas soberanamente sobre os mortos. Portanto, Aquiles, não lamentes absolutamente estares morto”.
A alma de Aquiles imediatamente respondeu:
“Não, não procures falar-me brandamente da morte, glorioso Ulisses. Eu escolheria, para que pudesse viver na terra, antes ser o servo de outrem, de algum homem sem fortuna cujos recursos fossem os mais parcos, do que ser o senhor de todos os mortos que pereceram”.
Que a terra nos seja leve!
* É médico sanitarista e professor da Universidade Federal de Sergipe.