Por Clara Angelica Porto *
“Eu sempre lhe quis bem”, sussurei ao ouvido dele. “Eu sei”, disse-me de volta. Beijei-lhe os cabelos brancos e quase morri ao perceber que o baton havia deixado a marca dos meus lábios. Tentei esfregar, tirar. Nada. Sussurrei de novo: Poeta, tatuei seus cabelos com meu baton vermelho e agora não sai. Tentei de novo. Nada. Ele disse: “deixe aí, eu autografando e carregando sua boca na cabeça”. Saí de fininho, piscando-lhe um olho e só então vi. O poeta estava numa cadeira de rodas.
Nos conhecíamos desde a adolescência, na Academia dos Jovens Escritores de Carmelita Fontes. Ele chegou depois, calado, observando, como um peixe fora daquela água para ele desconhecida. Mas era muito bonito, Carmela lhe dirigia aqueles olhares que eu conhecia bem, de satisfação diante de inteligência jovem maior; e eu também, depois que ele passou no teste escrevendo ali mesmo o poema da prova – fiquei encantada. Tão encantada que ficava inventando meios de me aproximar. Não conseguia. Ele era fechado à moda sertaneja, e não dava muita vez para menina do GA. Principalmente, a queridinha de Carmelita.
Um sábado, estava eu soprando bolinha de sabão na porta da casa da rua São Cristóvão, quando ele passou com uns amigos estranhos. Esmerei-me em soprar bolinhas grandes e voadoras, querendo chamar a atenção dele. Só mereci um “Ôi, você mora aqui, né?” Eu, desconfiada: “É…”
Tempos depois, fui com Mário Jorge para o concurso de poesia que ele levou num Poema da Aparição declamado por Wilma Porto, uma verdadeira aparição em branco, num momento inesquecível. Mário Jorge, triste por não participar, pois havia acabado de sair de uma clínica para desintoxicar, tomou minha mão e juntos vivemos aquele momento em um quase transe.
O tempo passou, fui e voltei e fui mais e voltei mais, até voltar. Frequentávamos os mesmos lugares, encontrávamos as mesmas pessoas, sempre tínhamos o que conversar. Chamava-o sempre de Poeta e sentia nisso um grande prazer – era uma reverência.
Quando voltei, senti-me honrada com o convite para escrever para o Folha da Praia e aceitei feliz. Às vezes, quando levava a coluna, ajudava na capa, nas coisas que faltavam. Até horóscopo fiz. Substituí Zara Zangada por Tara Contente.
E nossos caminhos continuaram se cruzando. Às vezes com dificuldades, com choques, mas sempre com admiração e aquele amor que eu nutria desde os tempos da Academia de Carmelita.
Ficamos um tempo estranhados, até que um dia, no Teimonde, eu tinha acabado de cantar o Super Homem de Gil, acompanhada por Pantera. Ele ficou no gargarejo, embevecido. Depois, chegou-se e disse: “Por que ficar assim longe se a gente gosta tanto do que o outro faz?” Não me dei por rogada. Joguei-me no pescoço do Poeta, enchi-o de beijos e disse: “Por que mesmo, logo eu, que te amo tanto?”. Celebramos com vinho e muita conversa e risadas tresloucadas.
Em alguns momentos, trocamos conversas pequenas e profundas, dizendo tudo com pouquíssimas palavras. Ele me mostrou que tinha gratidão pelo espaço que eu dei a Erê, levando-o para o TV Mulher. E mencionou o brinco de safira que dei ao bailarino. Erê era um príncipe e merecia uma joia de verdade, argumentei. Amaral amava Erê.
Fiz algumas coisas para a revista Cumbuca, mas foi a última matéria, sobre o Jardim Botânico de Marcel Nauer, com muitas fotos, que o encantou: “Ficou muito além do que eu esperava. Ficou lindo”, disse-me e dedicou 10 páginas da revista à minha matéria.
Ha alguns anos, quando Marcelo Ribeiro lançava um livro, nos encontramos e fiquei tão feliz em ver o Poeta que saltei-lhe no colo, onde fiquei um tempo. Um dia aí, ele publicou essa foto no Facebook, tenho que encontrar.
Saber que Amaral Cavalcante morreu, deixou-me muda. Atônita. Ah, ele foi encontrar Cleomar, Proust, os escritores todos no céu. E daí? Ele foi. Ele foi! Não tem mais o Poeta do instante amarelo, o cronista ímpar, a poesia pecadora de beleza afiada, o lirismo sem vergonha, o homem elegante, o orgulho sofisticado e o olho arguto e desconfiado. Não tem mais o homem lindo, a língua solta e o humor de inteligência maior.
Está fazendo festa no céu? Eu queria ele aqui, chegando devagar em um lugar e rapidamente tornando-se o dono absoluto, com todos à sua volta, bebendo com ele e bebendo ele.
É triste perder amigos. É triste perder alguém que você admira e ama.
Estou imensamente triste por saber que não vou mais encontrar o Poeta por aí, que não vou poder convida-lo para um vinho com guloseimas na minha casa, e ainda, com toda reverência, perguntar: “Poeta, quem você gostaria que eu convidasse”? Porque é assim que eu trato os príncipes.
E Amaral Cavalcante não foi só um grande poeta, cronista, jornalista. Amaral Cavalcante era um príncipe.
Minha alma está de luto.
Sim, é verdade, Poeta. A vida lhe quis bem. Eu lhe quero bem.
* É jornalista sergipana residente nos Estados Unidos
(Texto publicado orinalmente no Blog do jornalista Luiz Eduardo Costa)