Marcos Cardoso*
Assim que se abriu para ele o jardim dos justos, Amaral Cavalcante avistou pessoas que lhe pareciam familiare e ali perto um homem de barba grisalha numa cadeira de rodas folheando calmamente um livro.
– Cleomar! – acenou o poeta, vendo que o baiano lia uma antologia de Drummond.
– Negão! – alegrou-se o amigo cadeirante. – Estava te esperando…
– Você sabia que eu vinha?
– Fernando Sávio passou por aqui e espalhou a novidade.
– Fernando Sávio? – Amaral quase gargalhou, emendando com uma lembrança: – Quando lançamos em 1981 o Folha da Praia, Fernando Sávio era o nosso principal articulista, a novidade literária que orientou a empreitada por uma nova linguagem jornalística em nosso meio. Mas a sua mais inesquecível qualidade era a elegante malandragem, a entrega absoluta aos prazeres da vida; estas coisas que nos fazem eternamente amados e saudosos, porque nos mantêm na lembrança das ruas; elas que, verdadeiramente, detêm o poder de nos acenar com certa imortalidade. Fernando Sávio Brandão de Oliveira era, sobretudo, um boêmio consciente da sua genialidade, um homem emocionado com a própria capacidade de alumbramento, um escritor completo de humoradas convicções, um letrado de bem com a sua escrita e um amigo bom pra caralho! – Percebendo o que acabara de falar, censurou: – Soltei um palavrão. Pode?
– Aqui pode quase tudo, à exceção daquilo que mais nos deleitava, os prazeres da carne, a mesa farta e o álcool que nos fez homens felizes. Mas obrigado a você, Ilma Fontes, pelo teu estandarte de luta, por ter me mostrado, junto com Fernando Sávio, os caminhos aracajuanos que me guardaram, com zelo – respondeu Cleomar, em forma de oração.
Amaral pôs-se a falar: – A casa de dona Jenny, mãe de Ilma Fontes, era o nosso providencial aparelho. Mesa farta, sergipana, o belo cuscuz guarnecido, ora jabá, ao ovo estrelado em manteiga da terra para começar. O pão tostado na chapa, os biscoitinhos de fubá desmanchando na boca e a alva macaxeira com fiapos de lombo! Comer tão bem nos incitava à subversão, tramada sempre para depois do rango, que ninguém é de ferro!
Pensativo, Cleomar manteve-se contemplando os sergipanos: – Em minhas andanças de vida encontrei momentos difíceis e foi bem pesado saber administrá-los. Em compensação, essa mesma vida me propiciou momentos em que tudo valeu a pena. Depois de ter percorrido os caminhos do jornalismo intenso, nunca imaginei que justamente na terra que adotei de coração e pela qual sou visceralmente apaixonado, Sergipe, fosse ser alvo de algumas homenagens que até hoje, só em lembrar, provocam um aquecimento bem morno no meu coração.
– Amaral concordou lembrando de uma tarde vivida pelos dois: – Quando fui visitá-lo, acolheu-me uma mãe heráldica, cabelos brancos, em coque elegante, olhar percuto, postura juvenil: “Cleomar se acordou agora, mas ainda não quis sair da cama…” Saquei na hora. Nessa tarde modorrenta de sexta-feira, Cleomar mandara tudo à puta que o pariu e recolhera-se à lascívia dos lençóis, curtindo o cheiro do próprio corpo nu, desobrigado do fastio das “boas-tardes” protocolares e do cafezinho insosso na repartição. A visita foi curta, mas vi o que me interessava: um fauno saltitante em sua relva memorial, soprando na flauta a canção do seu destino. Absolutamente pagão e belo.
– Cleo fez um sorriso quieto de quem esconde um segredo prestes a revelar: – Com um giro lento de cabeça, ousei encarar a face da loba que resolvera chegar ao começo da madrugada uivando baixo e trazendo-me uma certa perplexidade gerada por aquela voz quente, rasgo de noturno verão, cheiro de doce perigo no ar. A mulher, quando é resolvida, fruta madura, sabe ter a esperteza da loba e sabe sobreviver sem matilha. – E prosseguiu, lascivo: – Nas madrugadas de amor e paixão, saber colher o fruto do suor amigo como o apanhador no campo de centeio. Visitar, como um velho viajante, planícies e dorsos da mulher amada. Palmilhar os quadrantes espalhados na pele morena da menina amada. Lembrar que a tua amada não sua: orvalha.
– Amaral revirou os olhinhos e suspirou como se ainda estivesse aqui: – Os cheiros guardam a senha da minha libido. É num sovaco exalando o fortum do sexo que eu gosto de descansar após o coito. Fico, ali, respirando o cheiro amante, como que revivendo o prazer da conquista, guardando na memória a mais secreta identidade do corpo amado no cheiro do suor compartilhado. Gosto de me enfiar sob lençóis para sentir o cheiro do meu corpo ou de apodrecer dois dias sem banho para curtir o azedume dele em podridões e ocultas putrescências. De vez em quando, nas mais assépticas ocasiões, cheiro disfarçadamente o meu sovaco para aferir se inda sou eu que estou ali.
Riram, alegres e infantilmente!
– O olfato, seguramente, é um dos sentidos mais marcantes na história de cada um – observou Cleomar. Parou pensativo e lembrou que o recém-chegado poderia trazer novidades: – Quero o chicote do salitre raivoso da maré de março estalando no lombo gorduroso dos que se envolveram em contas fantasmas e, hoje, espalham seus glúteos fartos nas cadeiras inquisitoriais das CPIs brasilienses enquanto tentam justificar as falcatruas cometidas contra o erário público!
Mas a lembrança do salitre desviou o pensamento de Amaral foi para outro assunto: – Minha tia Luizita morava na Praia Formosa, numa casinha deliciosa, com varanda para as croas, que se formavam na maré baixa, assim de maçunins e gorés. Do quintal delimitado por uma cerca de varas, via-se um imenso manguezal, de lama escura, quase sem vegetação, que se estendia até um sítio de manjelões, lá longe, onde depois construíram o Batistão. Foi lá que eu conheci o mar em companhia dos meus irmãos.
Cleomar quis voltar ao assunto: – A praia, que era Formosa, escurece suas águas e o cheiro fétido dos restos da “civilização” entristece as águas do rio. Pelo canal Tramandaí, dia e noite, todos os dias, a grande ameaça se expande, sem controle, sem alarde e, enquanto os automóveis circulam pela cidade de Aracaju e os empreendimentos imobiliários anunciam seus lançamentos em jornais e emissoras de TV, o rio sente um cansaço adormecer suas águas.
Amaral insistia com outras lembranças: – Queria viver perto do mar! Transferir-me para o sem fim da praia e escancarar-me ao sol da Atalaia. Queria deixar o mormaço da cidade, com suas ruas bêbadas de piche. A maresia grudada nos cabelos, mergulhar toda manhã sete ondas rasteiras, orando ao sortilégio da imensidão. Viver perscrutando o mar que banha a humanidade. Esse mundão de água e valentia, esse lugar de ninguém. Do mar, eu queria o sal da vida. Eu vivia bem em casa e o mar era meu moleque de recados:
– Vai ali à África levar notícias de mim. Ele ia.
– Corre, vai pegar um caramujo de sol, que eu quero assoprar. Ele pegava e voltava estrondando mundo aos meus pés: meu cão de espumas.
Cleomar: – Quem sabe, assim, a ira dos oceanos nos ajude a exterminar de vez os chacais e hienas mutantes que roubam e tentam se cobrir com o manto da impunidade perigosa.
Amaral recordou-se do menino de Simão Dias: – O mar, tão incompreensível para mim, ainda era uma quimera desconhecida e distante. – E reconheceu-se rebelde ao descobrir outras praias: – Era só descer do ônibus no terceiro ponto da praia 13 de Julho e embarcar nas canoinhas de tábua até o outro lado. O Colodiano, território sem incômodos da lei, oferecia maconha livre e grandes baratos. Era o território livre da contracultura dos anos 1970, bem ali, pertinho dos bem-bons da cidade, mas distante da repressão que nos incomodava.
Cleomar: – É assim que te guardo, Aracaju, compartilhando de cada momento vivido, de cada amanhecer que te visita, como se marcasses no coração da gente uma cumplicidade definitiva dos que te amam.
Amaral: – Algo noturno fez da minha cidade uma aldeia do mundo, eis que ficamos assim, simão-dienses. Ainda hoje, quando sonho com a casa onde nasci, é na cozinha onde a minha saudade vai parar. É lá onde reencontro a família cuidando de prover, com os cheiros do cominho e da hortelã miúda, a memória do meu paladar.
Cleomar lembrou de algo que um dia escreveu: – No intervalo da digestão, cada homem terá o direito de ler os versos de Thiago de Melo, ouvir sua música preferida, quem sabe até receber no rosto a visita de uma brisa da tarde com cheiro de manhãs esperadas.
Amaral: – Minha mãe Corina quis transformar aquela casa em hospedaria. Acho que vem daí, da compartilhada habitação na minha casa ancestral, a capacidade de conviver com pessoas diversas, a respeitar o espaço dos outros, a servir — com dignidade — aos que me solicitam e, principalmente, a me tornar transitável.
– E o que o poeta andava fazendo ultimamente?
– De tardinha, costumava ir ao sorvete. Botava um calçãozinho leve, pós-moderno, uma camisa churriada, que eu mesmo reabilitei aparando as mangas. Gosto delas assim. Dá um tom de bofeca-mas-não-tanto, que me delicia. E ia, luxento e faceiro, a meu Clair de Lune.
– Boêmio que é boêmio não vai somente a um bar um tempo inteiro. Caso aja assim, corre o risco de fazer parte da paisagem ou então se tornar referência do local.
Amaral prosseguiu: – Arquibaldo, também chamado, no Colégio Agrícola, de “Sarrabuio do Cão”, me descobriu lá. Inda me fiz de manco, numa retirada infeliz, que não deu certo. Ficamos, então, na sorveteria, frente a frente, pela eternidade de dois suspiros, até que Arquibaldo me fitou com a meiguice juvenil, que eu julgava perdida: — Tonho, eu me lembro sempre de você. E tocou, como um anjo remido, a minha infame cabeleira branca. A lua inchou em busca de horizontes e eu fui pra casa ouvir Debussy. A vida me queria bem.
– Vamos chegando – atalhou Cleomar e seguiram. À frente, avistaram Fernando Sávio e Barrinhos rindo com Hilton Lopes dizendo cocoré-bico-de-pato. Próximo, estava Araripe Coutinho declamando em voz alta o último poema e ouvido com emoção por Ezequiel Monteiro, Santo Souza, Joel Silveira, Hunald Alencar, Antonio Carlos Viana e Luiz Antonio Barreto.
Amaral lembrou-se do que disse certa vez sobre o mais culto dos jornalistas: – Luiz Antonio Barreto é uma ponte sólida entre a intelectualidade empedernida das academias e o batente fogoso da vida artística. Um elo (creio que insubstituível) entre a realidade cultural sergipana e os alfarrábios da história. Um homem que perseguiu a boniteza da vida com elegante nobreza e se findou respeitado pelo que acertou na vida. Mestre Luiz, guarde-me uma cadeira no cafezinho do céu.
Nem percebeu que atrás deles já vinham José Fernandes e Edgar do Acordeom se dirigindo a Ismar Barreto, que, inspirado no sorriso de Cristina Alves, dedilhava um violão e era fotografado por Sidney Leite.
Assim é o céu.
Citando por inspiração os livros “Os segredos da loba” (2009), de Cleomar Brandi, e “A vida me quer bem – Crônicas da vida sergipana (2019), de Amaral Cavalcante.
*Marcos Cardoso é jornalista e escritor. Foi diretor de Redação do Jornal da Cidade, secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, diretor de Comunicação do Tribunal de Contas de Sergipe e é servidor de carreira da UFS. Dentre outros livros, é autor de “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” e do romance “O Anofelino Solerte”.
Foto: Márcio Garcez