Por Lelê teles *
alceu é funcionário público, seu hobby e ler jung e tocar flauta doce.
frequenta uma chácara, nos arredores de brasília, propriedade de um coroa barbudo que se autodeclara guru.
o sujeito manja de mantras, massagem ayurvédica e, apesar de solteiro, faz terapia para casais.
por influência do tal guru, alceu já foi à índia.
ir à índia, pra essa moçada que cultua gurus, é como ir ao vaticano para os católicos, à meca para os muçulmanos e à israel para os seguidores dos empresários de cristo.
alceu é casado com alice, que é atriz e nutróloga e frequenta o retiro com o marido.
por força de um decreto do governo do distrito federal, o casal foi obrigado a ficar sem ver o guru por pelo menos quinze dias.
há sete dias alice não vai ao teatro e nem ao consultório e, pelo mesmo período, alceu não vai ao trabalho carimbar papéis.
estão em casa, não têm filhos.
apesar de ouvir recitais de cítara, saborear folhas e leguminosas frescas e se recusar a comer cadáver de animais, alceu é um abusador agressivo e sem remorsos; costuma tratar a mulher com superioridade e um certo desprezo, é metido a sabichão tagarela e é a caricatura do machão possessivo.
estar em casa, por uma semana com o marido, tem sido uma tortura para alice.
longe dos olhares serenos dos colegas de chácara, alceu é um monstrinho.
ele começa o dia calmo e carinhoso, contempla as nuvens, observa o caminhar organizado das formigas, fotografa uma borboleta que pousa no ombro da esposa.
em lótus, sob a sombra de um guapuruvu, alceu toca sua flauta; num aflato fluido e fônico.
no almoço, enquanto despeja azeite sobre a salada, ele inventa um pretexto para reclamar da esposa, eles batem boca.
a briga vai se estender, com pequenos intervalos, até até as nove da noite.
à noite, ébrio de vinho, alceu fica mais solto e mais agressivo.
depois de xingar e humilhar a mulher por ela ter esbarrado no seu jarro com uma muda de purple haze, alceu lhe esbofeteia, chamando-a de idiota desastrada.
ela grita, retruca, não dá o braço à torcer.
mas ele lhe torce o braço, lhe puxa o cabelo e lhe soca o rosto como quem bate em alguém que se odeia.
alceu se mostrou um imbecil agressivo um ano após começarem a namorar, estão juntos há quatro anos, ele a espanca duas ou três vezes por mês, ela acredita que, de uma forma ou de outra, ela tem culpa por apanhar; se ela não derruba aquele vaso…
depois de ser covardemente massacrada, ela se encolhe e chora.
pouco tempo depois ele, com as mãos na cabeça como quem perdeu o juízo, afaga a esposa, simula arrependimento, lhe faz cafuné, lhe envolve em seus braços acolhedoramente e acarinha e infeliz ferida.
esquenta água e faz compressa para os hematomas do rosto e do olho que começa a inchar.
lhe trata as feridas e diz que a ama do fundo do seu coração; pede desculpas, diz que perdeu a cabeça e que a terapia está funcionando, ele vai conseguir se controlar da próxima vez.
o psicopata agressor controla a mente de sua vítima, ele estuda e mapeia sua estrutura emocional, conhece todos os seus caminhos e atalhos.
alice está presa nessa armadilha.
encolhida num canto, abraçando os joelhos, com o corpo trêmulo, o rosto quente e banhado em lágrimas, alice, fragilizada e em desamparo, beija seu agressor, diz que o perdoa, chorando.
ele deita-se sobre ela, olhos nos olhos, e a penetra com carinho; tântricamente.
eles se beijam e chegam ao orgasmo juntos.
uma estrela cadente rasga o céu escuro, uma coruja observa absorta e absorve.
eles miram as estrelas.
palavra da salvação.
ps: o lar é um dos lugares mais inseguros para meninas e mulheres, sejam elas namoradas, esposas, irmãs, filhas ou enteadas.
a violência contra a mulher espalha-se como uma epidemia.
geralmente, as agressões ocorrem no início da noite ou nos finais de semana.
com a quarentena, o número de agressões contra as mulheres cresceu assustadoramente na china; no rio, já há um aumento considerável de queixas.
há lares amargos, há criaturas horrendas sorrindo com você na mesa do bar.
meta a colher sempre que vir uma agressão contra uma mulher.
senão, o agressor pode meter nela uma colher, um garfo, uma faca, ele pode meter uma bala na cabeça dela.
fica em casa mas fica de boa!
* Formado pela Universidade de Brasília, Lelê Teles é jornalista, roteirista e publicitário. É roteirista do programa Estação Periferia (TV Brasil) e da série De Quebrada em Quebrada (Prodav 09). Sua novela, Lagoas, foi premiada na Primeira Bienal de Cultura da UNE. Discípulo do Mestre Cafuna, prega o cafunismo, que é um lenitivo para a midiotia e cura para os midiotas.