Marcos Cardoso*
O processo de escolha do reitor que deveria tocar os destinos da Universidade Federal de Sergipe a partir deste mês de novembro de 2020 foi confuso por dois motivos completamente alheios à gestão da instituição: a interferência do presidente Jair Bolsonaro em determinado momento, agravada pela decorrência do ano atípico para a humanidade em consequência da pandemia do novo coronavírus.
Quando as entidades Adufs (docentes), Sintufs (técnicos administrativos) e DCE (estudantes) já se movimentavam para organizar a consulta à comunidade universitária sobre os candidatos às listas tríplices de reitor e vice-reitor, Bolsonaro assinou a Medida Provisória Nº 914, no dia 24 de dezembro de 2019, regulamentando e alterando o processo de escolha dos dirigentes das universidades e institutos federais.
A MP 914 determinava que a consulta à comunidade deveria ser organizada por colégio eleitoral instituído especificamente para esse fim e o processo de escolha seria apenas para o cargo de reitor, considerando o voto qualificado dos três segmentos universitários na seguinte proporção/peso: professores, 70%, técnico-administrativos, 15%, e estudantes, 15%.
A MP, que entrou em vigor dia 3 de fevereiro, após passado o recesso parlamentar, tem força de lei desde a data que passa a vigorar e seus limites e alcance estão previstos no artigo 62 da Constituição Federal, cabendo ao reitor da UFS apenas cumpri-la e não a contestar.
No dia 20 de fevereiro, atendendo uma solicitação formulada pelo procurador da República Leonardo Cervino Martinelli, o reitor Angelo Antoniolli informou ao Ministério Público Federal as providências que vinham sendo adotadas em vista do processo eleitoral, como a criação de um grupo de trabalho para propor regulamento de consulta à comunidade acadêmica e a necessidade de adequação do Estatuto da UFS ao que estava previsto na Medida Provisória.
No dia 5 de março, o Conselho Universitário da Universidade Federal de Sergipe se reuniu para alterar o Estatuto. A Sala dos Conselhos ficou lotada e o debate foi duro. Uma pré-candidata, professora Denise Albano, chegou a insinuar que a eleição de reitor poderia ser judicializada. Era tudo o que o reitor não queria e trabalhou desde o início do processo para evitar. Angelo Antoniolli sustentou que era preciso seguir a lei vigente, sob o risco até do presidente da República nomear um reitor pro tempore, um interino. Finalmente, a alteração do Estatuto foi adiada e acabou não acontecendo.
Naquele momento, as entidades já realizavam uma consulta à comunidade, que era considerada informal pela gestão da UFS, pois não estava adequada às novas circunstâncias. Angelo Antoniolli lembrou que os governos anteriores trabalhavam de forma que a lista tríplice chegasse ao MEC obedecendo a decisão do Conselho que a definiu. “No decreto antigo, do ministro Paulo Renato, de 1995, quem fazia a lista era o Conselho, que indicava o primeiro mais votado na consulta à comunidade e o Conselho mesmo escolhia mais dois para formar a lista tríplice. Só que havia um pacto naquela época, que era a escolha pelo governo sempre do primeiro colocado da lista. Eu passei por esse processo quatro vezes, duas vezes como vice-reitor, com Josué Modesto, e duas vezes como reitor. Hoje, tudo o que nós fizemos seria totalmente ilegal, sob o olhar da MP do atual governo. Temos que entender o processo atual e não querer repetir o passado. Estamos sob um novo governo e numa outra circunstância”, observou, numa entrevista ao Jornal do Dia.
Covid 19
Aconteceu a pandemia e as atividades presenciais em todos os seis campi da UFS foram suspensas no dia 16 de março. A consulta à comunidade realizada pelas entidades não pôde ser concluída. Num requerimento à Justiça Federal, as entidades relataram que a votação pelos três segmentos da Universidade seria realizada nas datas de 19 e 20 de março. Todavia, observaram, a pandemia inviabilizou a continuidade do cronograma da consulta.
A MP 914 não foi votada pelo Congresso Nacional e sua vigência se encerrou no dia 1º de julho. O processo de escolha do reitor e vice-reitor voltou a seguir o que dispunha a legislação (a Lei nº 9.192, de 21 de dezembro de 1995, o Decreto nº 1.916, de 23 de maio de 1996, a Nota Técnica 243/2019/CGLNES/GAB/SESU/SESU e o Estatuto da UFS).
Caberia ao reitor, no exercício de suas atribuições, convocar o Colégio Eleitoral no prazo de até 150 dias anteriores ao término de seu mandato, conforme previsto no Estatuto. O mandato do reitor se encerraria em 18 de novembro, razão pela qual o Colégio Eleitoral Especial — formado por representantes discentes, docentes e técnicos administrativos, membros do Conselho Universitário (Consu), Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Conepe) e do Conselho Diretor — foi convocado para o dia 15 de julho, seguindo o mesmo rito das sucessões anteriores.
O Ministério Público Federal decidiu arquivar o inquérito que apurava supostas irregularidades no processo para escolha do reitor. O procurador da República Leonardo Martinelli entendeu que, tendo se encerrado o prazo de validade da Medida Provisória nº 914, a investigação demonstrou-se defasada.
Segundo o procurador, com o fim do prazo de vigência da MP 914, houve um retorno aos trâmites anteriormente adotados pela Instituição. “Desta maneira, nos termos do art. 22, caput e § Único do Estatuto da UFS, a nomeação do reitor dar-se-á por meio da elaboração de lista tríplice realizada pela maioria absoluta de um Colégio Eleitoral Especial, que já se encontra constituído”, afirmou.
E complementou: “Uma vez que houve retorno ao procedimento anterior, e já estavam sendo adotados os trâmites para adaptação àquele tipo de procedimento, não resiste motivo para continuação da presente investigação”.
Autonomia universitária
No dia 7 de julho, a juíza federal Telma Maria Santos Machado indeferiu a tutela provisória de urgência antecipada requerida pela Adufs, Sintufs e DCE, que ingressaram em juízo pretendendo assegurar o direito à utilização do sistema eletrônico de votação SIGEleição, da UFS, para realizar a consulta pública com a comunidade.
Na sua decisão, a magistrada afirmou que “a pretensão requerida é contrária à autonomia universitária, que, embora não se traduza em soberania, deve ser respeitada quando não atenta contra a legalidade lato senso. No caso, não vejo conduta da ré (UFS) que atente contra a lei (lato senso) ou mesmo contra o princípio da razoabilidade. Além disso, os procedimentos para eleição de Reitor exigem formalismo e cautela”.
A juíza federal deu destaque à manifestação da UFS de que “a gestão superior da Universidade Federal de Sergipe tem zelado para evitar qualquer questionamento do processo eleitoral a fim de cumprir integralmente o Estatuto da instituição. A utilização do serviço SIGEleição em consulta informal poderia ensejar a indicação de um reitor pro tempore, dada a possível confusão entre processos de consulta informal e consulta oficial (formal) propriamente dita, não prevista em nossos regramentos”.
No mesmo dia 7 de julho, o juiz federal Ronivon de Aragão, titular da 2ª Vara da Justiça Federal da 5ª Região, indeferiu mandado de segurança coletivo impetrado pela Adufs pedindo a suspensão dos efeitos da Portaria nº 442, de 4 de junho de 2020, que convocou o Colégio Eleitoral Especial para reunir-se no dia 15 de julho, para proceder à eleição da lista tríplice de nomes para escolha do reitor e vice-reitor.
Quanto à alegação da Adufs de que a Portaria não permitia “nenhuma forma de participação da comunidade acadêmica” e que o reitor marcou a reunião do Colégio Eleitoral “de forma antidemocrática e prematura, já que a data limite para envio da lista tríplice ao Ministério da Educação e Cultura ocorre sessenta dias antes do término do mandato atual, ou seja, 20 de setembro”, o juiz Ronivon de Aragão foi enfático: “Inicialmente, ressalta-se que deve ser dada ampla divulgação ao processo eleitoral, mas, quanto a tal ponto, inexistem provas acerca do descumprimento, especialmente, diante da publicação da portaria de convocação”.
“No tocante à alegação de ausência de participação popular na construção desta lista, através de amplo debate democrático no seio da comunidade, também não merece prosperar. A realização de debates, atos democráticos e ampla manifestação de toda a comunidade, docentes, técnicos administrativos e discentes da UFS, conforme pretende a parte impetrante, encontram-se, evidentemente, prejudicados, diante das determinações atinentes ao distanciamento social”, prosseguiu o magistrado.
“É certo que existe a possibilidade de realização de atos democráticos através de ferramentas virtuais, mas que podem ser praticados, independentemente de determinação ou participação da Reitoria da UFS”, concluiu o juiz federal.
E finalizou: “Deve-se acrescentar que as Universidades Federais, consoante dispõe o artigo 207 da Constituição Federal, possuem autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Desse modo, a definição da data de realização para eleição da lista tríplice insere-se na autonomia da instituição de ensino superior, não sendo possível a este Juízo modificá-la, substituindo a decisão do administrador. Isto porque não cabe ao Poder Judiciário intervir em tal seara, com exceção das hipóteses em que configurada alguma situação de ilegalidade, o que não é o caso dos autos. Nesse passo, ausente o fumus boni iuris, desnecessária a análise do periculum in mora. Ante o exposto, indefiro a liminar requerida”.
Por fim, no dia 11 de julho, o desembargador federal Francisco Roberto Machado, da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, seguiu o entendimento do juiz federal Ronivon de Aragão, indeferiu o recurso interposto pela Adufs e manteve para o dia 15 a reunião do Colégio Eleitoral Especial. Considerando “a inexistência de qualquer ilegalidade cometida pela Universidade agravada, reputo procedente manter incólume a decisão recorrida até o julgamento do mérito deste agravo de instrumento. Assim, indefiro o pedido de tutela recursal”, julgou o desembargador Francisco Roberto Machado.
“A IES possui discricionariedade para expedir os atos normativos necessários ao seu regular funcionamento, não cabendo ao Poder Judiciário intervir no processo de formação da lista tríplice de nomes para escolha do Reitor e Vice-Reitor, salvo em caso de flagrante ilegalidade, não sendo esta a hipótese dos autos. Agir de modo diverso implicaria violação ao art. 207 da CF/88, que confere autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial às Universidades, bem como à Lei nº 9.394/96 (estabelece diretrizes e bases da educação nacional)”, afirmou o desembargador federal.
Qual a razão da intervenção?
No dia 15 de julho, como previsto, foi realizada a sessão do Colégio Eleitoral Especial para formação das listas tríplices com os nomes de reitor e vice-reitor. A reunião foi transmitida pelo canal da TV UFS no Youtube e a votação foi feita através dos sistemas integrados da UFS.
Para o cargo de reitor, o nome mais votado foi o do professor Valter Joviniano de Santana Filho, com 37 votos dos conselheiros. Em seguida, André Maurício Conceição com 30, seguido por Vera Núbia Santos com 9, Denise Leal Fontes Albano com 5, e Valter Cesar Pinheiro com 1 voto. Para o cargo de vice-reitor, os conselheiros conferiram 37 votos para Rosalvo Ferreira Santos, 28, para Rozana Rivas de Araujo, 9, Silvana Aparecida Bretas, 5, José Aderval Aragão, 2.
No último dia 16, o Ministério da Educação encaminhou ao professor Angelo Antoniolli, então presidente do Conselho Superior da Universidade Federal de Sergipe, um ofício informando que chegou ao conhecimento do MEC um inquérito civil que corre no Ministério Público Federal, provocado pelo Sintufs, tratando de denúncia de suposta irregularidade no processo eleitoral para a escolha do reitor e solicitava esclarecimentos.
O Gabinete do Reitor reiterou que o inquérito trata de questões já decididas pela Justiça Federal, que não visualizou ilegalidade em atos adotados pela UFS. Os esclarecimentos foram encaminhados ao MPF na sexta-feira, 20. O mandato do reitor Angelo Antoniolli encerrou no dia 18, mas não havia interrupção das atividades administrativas, uma vez que os mandatos do ex-reitor e do então vice-reitor não coincidiam, portanto, o professor Valter Joviniano de Santana Filho responderia interinamente como reitor da UFS até o dia 13 de dezembro.
Como está demonstrado, por todos os cuidados adotados pela gestão de Angelo Antoniolli, pautando suas ações pela legalidade, justamente buscando evitar a judicialização e a nomeação de um reitor pro tempore, não haveria motivo para a intervenção do MEC. Que, aliás, é a décima sétima intervenção na educação federal desde que Bolsonaro assumiu a presidência.
E, muito menos, haveria motivo para o reitor, um democrata, ser acusado de ser golpista, de querer dar um golpe. Pelo que está posto, Adufs e Sintufs escolheram o inimigo errado. Serviram de inocentes úteis e deram um tiro no pé.
*Marcos Cardoso é jornalista e escritor. Foi diretor de Redação do Jornal da Cidade, secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, diretor de Comunicação do Tribunal de Contas de Sergipe e é servidor de carreira da UFS. É autor dos livros “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” e do romance “O Anofelino Solerte”.
1 Comments
A melhor coisa que o mec fez foi nomear uma interventora. Parabéns ao MEC. Somos todos ufs e queremos o melhor para a instituição.