Edmilson Menezes[1]
Em seus mais de 50 anos de existência, essa é a primeira vez, até onde sei, que a Universidade Federal de Sergipe (UFS) sofre uma intervenção federal de cunho administrativo. Uma interventora, caiada com a expressão Reitor pro tempore, foi indicada pelo Ministério da Educação para assumir a reitoria daquela instituição de ensino superior sergipana. O que é uma intervenção? Grosso modo, pode-se dizer que intervenção é uma ação, um papel, um efeito de alguma coisa ou pessoa em um processo. Reveste-se de aspectos jurídicos quando um dos seus alvos é o campo administrativo. Intervenção, dessa forma, torna-se uma ação para interferir em processo pendente; isso resulta na decisão atribuída a um terceiro interveniente. Parece que o atual caso de intervenção na UFS passa pelas duas situações. Primeiro, porque está diretamente ligado ao processo eleitoral para os cargos de Reitor e Vice-Reitor, decorrido há alguns meses. Segundo, porque uma carga jurídica é levantada para dar-lhe sustentação. Assim, parece que algo ficou pendente e inconcluso, sem que a própria comunidade universitária pudesse, de algum modo, resolver suas altercações internas. Então, de pronto, a intervenção bateu à nossa porta!
Quanto à letra, parece que é possível conceder e, então, entender o processo interventivo. Mas, e quanto ao espírito, essa concessão e esse entendimento também podem ser feitos? A meu ver, não. A universidade pública brasileira está sob ataque indômito e feroz do presente governo federal. Seus motivos, como sabemos, passam bem longe da verdade ou da razoabilidade. São movidos unicamente por negócios individuais, egoicos, de algumas personalidades hoje ascendidas ao poder. O governo federal tornou-se um inimigo das instituições educacionais públicas. A pena do Prof. Roberto Romano nos forneceu uma arguta meditação – que ainda nos instiga – acerca do modo irascível como o poder de governo é capaz de tratar o ensino: “Na impossibilidade empírica de nadificar toda instituição de ensino público, a política governamental dedicou-se à obra de boicotá-la, por medidas veladas ou abertas inquinando-a segundo os desejos e cálculos imediatamente lucrativos, de um lado, e da uniformização a piori, de outro. O chamado “sistema” destrói o que ainda resta de ensino e pesquisa rigorosos, e espalha benesses a grupos socioeconômicos desprovidos de responsabilidade social com a educação. Cortes de verbas, ingerência econômica na planificação escolar, abraço de serpente, enleando de mil modos a vida acadêmica. Réptil de mil cabeças, desde a policial até à de sereia prometendo melodiosamente aos docentes e estudantes individuais a ascensão política e social, mesmo à custa do Todo, constituído por seus colegas.”[2]
O escamífero caviloso nunca esteve tão presente no cenário brasileiro como agora, o alcance de suas cabeças atinge todos os setores de nossa coletividade. Presenciamos o triunfo do autoritarismo, da intolerância, da aversão à ciência e à verdade, do cinismo e da violência com uma placidez que surpreende. Quanto a nós das universidades, devemos nos empenhar e nos manifestar principalmente no combate à aversão à teoria, sem dúvidas uma característica de nossa época, sabendo que seu atrofiamento de modo nenhum é casual. O que mais espanta no episódio protagonizado pela UFS é o fato de ser a interventora uma professora doutora, possuidora de títulos conferidos pela casa que abriga a teoria e a ciência. Dessa casa sai também o consórcio com o inimigo. Nada de protegê-la ou resguardá-la. Impossível não concordar com Diderot: “Até aí não se era mais do que escolar; é aqui que se toma o título de doutor; para o de douto é outra coisa.”[3] Com efeito, nossa interventora não é um burocrata subalterno submetido às ordens de um chefe ou mesmo um técnico do Ministério da Educação agindo premido pela força de uma designação hierarquicamente superior. Trata-se de um aceite, de um ato livre e consciente de um docente, algo que nos remete diretamente ao nexo entre os intelectuais e o poder.
Aprendemos com Foucault que o poder não se encontra somente nas instâncias elevadas da censura, ele, do mesmo modo, penetra capilar e sutilmente em toda a trama da sociedade. E os intelectuais fazem parte desse sistema de poder, são agentes da consciência e do discurso. Vimos na cerimônia de posse da interventora espraiar-se um ar missionário, aquele bem próprio das personalidades que se impõem pela falsa atitude conciliatória e buscam cativar as consciências desavisadas pelo tom de neutralidade que aparentam possuir. Falou-se, nessa mesma cerimônia, de honra, de Deus, evocou-se em agradecimentos a família da interventora (pasmem!); toda uma gama de elementos afetivos que escondem, por trás de um pronunciamento quase patético, os reais motivos e os critérios destacados para se implantar a intervenção e a interventora.
Diz uma antiga anedota que Deus criou o homem, e o diabo o colega. Se existe algum fundo de verdade nessa pilhéria, é sempre saudável, em determinadas situações, lembrar ao (s) colega (s) essas palavras quase olímpicas: “Nada é estável neste mundo. Hoje no topo da roda, amanhã embaixo. Somos dirigidos pelas malditas circunstâncias, e mal dirigidos.”[4]
[1] Professor da Universidade Federal de Sergipe.
[2] ROMANO, Roberto. Intelectuais: entre a universidade e o estado. In: Lux in Tenebris. Meditações sobre Filosofia e Cultura. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Cortez, 1987, p.99.
[3] DIDEROT, Denis. Plano de uma universidade. In: Obras I (Filosofia e Política). Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 273 (grifos meus).
[4] DIDEROT, Denis. O sobrinho de Rameau. Trad. de Marilena Chaui. In: Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural. 1979, p. 79. (Coleção “Os Pensadores”).