Por Antônio Samarone *
No Segundo Congresso Científico Pan-Americano, reunido em Washington, em 27 de dezembro de 1915, o sergipano Rodrigues Dória, apresentou o primeiro estudo no Brasil sobre a maconha.
O trabalho de Dória faz uso das anotações dos Drs. Aristides Fontes, clínico em Aracaju, e Xavier do Monte, clínico em Propriá.
Segundo o citado estudo, foram es escravos que trouxeram para o Brasil o hábito de se fumar as sumidades floridas do fumo d’Angola. (Maconha, diamba, pango, erva da felicidade, liamba e riamba), cientificamente a Cannabis sativa.
O cultivo da maconha em Sergipe era acompanhado de práticas fetichistas, lembrando a celebrada mandragora da antiguidade. Os mistérios que cercavam os cuidados com a planta concorriam para lhe dar mais valor, exaltar as suas virtudes, excitando a imaginação.
“O vegetal macho não atinge o crescimento, nem tem a abundância de ramificação da planta fêmea, e são mais delgados os seus ramos. Isto talvez devido aos cuidados maiores que se têm com a fêmea, empregada de preferência em todos os misteres, exceto, na medicina popular, quando dão em infusão contra as cólicas uterinas. Neste caso, se recomenda as inflorescências e folhas da planta masculina.” Dória.
Em Sergipe, a maconha era curtida no sereno da madrugada.
“A colheita se faz na maturidade da planta, e são usadas as inflorescências femininas, com os invólucros florais e brácteas. Essas partes são dessecadas à sombra, expostas a correntes de ar, e depois algumas noites ao relento para receberem o sereno e ficarem curtidas, ou sofrerem fermentação, o que as torna mais agradáveis ao fumar.” Dória.
A maconha era fumada pura, em cigarros de palha de milho ou em cachimbos de fornilho barro enegrecido. Nas margens do rio de São Francisco fazia-se também o cachimbo de pedra. Usava-se o canudo de pita, o pau do cachimbo de um vegetal denominado de canudeiro, enfeitado com pirogravuras.
Para reduzir a ação irritante da fumaça que provoca tosse, e às vezes faz espirrar, adaptavam o cachimbo a uma cabaça com água, em imitação ao cachimbo turco, e pelo qual a fumaça era lavada, deixando na água o sarro, ficando a maconha mais fresca, agradável, aromática e ativa. Esse dispositivo era chamado de grogoió.
A planta também era usada em infusão, em forma de chá, e entrava na composição de certas beberagens. A maconha era usada livremente pela maioria do povo, em suas festas e rituais.
A maconha os tornava mais espertos e de inteligência mais pronta e fecunda para encontrar a ideia e achar a consonância.
Rodrigues Dória nos assegura:
“Vi algumas vezes; quando criança, nas feiras semanais de Propriá, minha terra natal, à noite, ao cessar a vendagem, indivíduos se entregarem à prática de fumar a erva nos dispositivos rústicos já descritos, dos quais muitos se serviam promiscuamente, sorvendo em suspiros profundos a fumarada apetecida, depois entravam em desafios ou duelos poéticos.”
“Um estado de bem-estar, de satisfação, de felicidade, de alegria ruidosa são os efeitos nervosos predominantes. É esse estado agradável de euforia que leva a maior parte dos habituados a procurar a planta, a cujo uso se entregam com mais ou menos aferro.”
“As ideias se tornam mais claras e passam com rapidez diante do espírito; os embriagados falam demasiadamente, dão estrepitosas gargalhadas; agitam-se, pulam, caminham; mostram-se amáveis, com expansões fraternais; veem objetos fantásticos, ou de acordo com as ideias predominantes no indivíduo, ou com as sugestões do momento.”
“A esse estado segue-se às vezes sono calmo, visitado por sonhos deliciosos. Há na embriaguez da maconha o fato interessante de, após a dissipação dos fenômenos, lembrar-se o paciente de tudo o que se passou durante a fase do delírio.”
“O Dr. Aristides Fontes, que conversava com pescadores habituados a usar a maconha, ouviu que, quando se encontram no mar em canoas ou jangadas, fumam em grupos para se sentirem mais alegres, dispostos ao trabalho, e menos penosamente vencerem o frio e as agruras da vida do mar.”
“Depois de algumas fumadas, tocados pelo efeito da maconha, tornam-se alegres, conversadores, íntimos e amáveis na palestra; uns contam histórias; tais fazem versos; outros têm alucinações agradáveis, ouvem sons melodiosos, como o canto da sereia, entidade muito em voga entre eles.”
A medicina popular sempre usou a maconha.
“A dor física é muitas vezes a causa do vício. As nevralgias dentárias, as dores reumáticas, as gastralgias, as cólicas uterinas em estados dismenorreicos, determinam muita vez o emprego da planta pelos seus efeitos narcóticos e analgésicos. Obtido o resultado benéfico, não hesitam os pacientes em voltar à erva em um segundo acesso, ou como preventivo, e daí se gera com facilidade o hábito e o vício de fumar a maconha.”
Por outro lado.
“Na Penitenciária de Aracaju, onde de alguns anos para cá foi proibida a entrada da maconha, por causa dos distúrbios por ela motivados entre presos, os sentenciados se entregavam ao hábito de fumá-la “para aliviarem o espírito acabrunhado pela prisão, e terem por esse modo momentos de distração e alegria.”
Dória, antecipou-se a uma visão da psiquiatria atual, e defendia que a alienação mental, era um dos fenômenos terminais do vício. Ele lutou ferozmente para criminalizar o seu uso. “A loucura pode ser a consequência do uso da Erva”, acreditava o doutor.
Afirmou também Rodrigues Dória, no famoso texto:
“Num estado de maconhismo crônico, o vício é imperioso, dominante e tirânico.”
“Os inveterados e os insaciáveis no vício podem entrar em um estado de caquexia, que não permite viver muito tempo. Emagrecem rápida e consideravelmente, adquirem cor térrea amarela, dispepsia gastrointestinal, fisionomia triste e abatida, depressão de todas as funções, bronquites.”
“Nesse estado quase sempre a morte sobrevém em pouco tempo, e diz o povo haver uma tísica da maconha, de forma aguda e rápida, exterminando a vida em dois ou três meses.” Dizia o erudito médico.
Eu tenho um amigo, desses inveterados, que faz manteiga, óleos e bolos de maconha, come até com farinha, só que é gordo, rosado e saudável, a quem eu dedico essas mal traçadas linhas.
Eu resenhei apenas o conteúdo cultural do importante texto de Rodrigues Dória, evitei comentar as passagens racistas e preconceituosas. Os interessados, procurem o texto original.
O centenário texto foi largamente utilizado para justificar a criminalização do uso da maconha no Brasil. Para os interessados no Direito, o texto de Dória desenvolve uma longa argumentação jurídica.
* É médico Sanitarista e professor da Universidade Federal de Sergipe.
2 Comments
Boa, grande professor Samarone. Seria tão bom se nossos outros docentes do curso de medicina da UFS se mantivessem tão atualizado quanto senhor. Infelizmente, o que predomina no ambiente acadêmico do curso é apenas mais do mesmo pensamento de um século atrás, onde os acadêmicos insistem em se manterem desinformados, no limbo do preconceito e do estigma.
Infelizmente Rodrigues Dória foi um vanguardista do lado obscuro da medicina, que acabou por contaminar muitas mentes influentes do século passado. Mas o tempo é de mudança, pois os que antes apedrejavam agora necessitam da medicina oriunda da planta sagrada.
Ótimo comentário, Lucas! Que bom saber que existem mentes abertas no curso de Medicina em Sergipe, ainda que sejam exceções.