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A militarização do estado brasileiro

Por Afonso Nascimento *

Eu nunca prestei o serviço militar. Fui barrado nos exames laboratoriais solicitados antes de serem escolhidos os recrutas de 1973. Naquele período, estava me preparando para entrar com um pedido de dispensa, alegando que tinha sido aprovado no exame vestibular em Direito da UFS. Isso não foi necessário, porque caí na cota de excedentes, aquela do número maior de jovens convocados em relação ao número de vagas. Na juventude e agora na minha vida de professor universitário sempre tive a identidade de um civil. Durante a minha graduação em Direito, a minha formação antimilitarista foi reforçada. Não tenho nada contra as instituições e os servidores públicos militares, mas contra o militarismo.

Volto um pouco ao passado… Quando fiz meus estudos de pós-graduação sobre a Teoria do Estado na França, tive a chance de frequentar um seminário obrigatório sobre “A história militar da França” e, mais tarde, vivendo nos Estados Unidos, ministrei um curso de graduação bem sucedido de Política Comparada (um tanto artificial, vejo hoje) entre o sistema político brasileiro e aquele da França.

Para além disso, tive a chance de viver na França e nos Estados Unidos e observar como os militares se comportam em duas democracias consolidadas. Trato primeiro da França. Lá a força militar é conhecida como “La grande Muette”, ou seja, “A Grande Muda”. Isso quer dizer que, para os franceses, numa democracia, os militares devem ser mudos. O que se observa atualmente no Brasil é que os militares falam tanto quanto os ministros do Supremo Tribunal Federal, uma outra aberração. Na capital americana Washington, é possível imaginar grandes discussões entre o presidente e generais no salão oval da Casa Branca, mas isso fica por lá. Em solo estadunidense, os militares também são “mudos”. A democracia é coisa de civis.

Nos últimos tempos, que está acontecendo no Brasil é uma militarização do Estado. A presença dos militares, como atores políticos ativos, portanto não mudos e que militarizam o Estado, torna-se evidente com a presença de militares listados abaixo: “Jair Bolsonaro; Hamilton Mourão; Otávio do Rêgo Barros; Walter Souza Braga Netto; Augusto Heleno Ribeiro Pereira; Luiz Eduardo Ramos B. Pereira; Fernando Azevedo e Silva; Marcos Pontes; Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Júnior; Eduardo Pazuello; Milton Ribeiro; Wagner de Campos Rosário; Tarcísio Gomes de Freitas; Wagner Rosário; Flávio Augusto Viana Rocha; Joaquim Silva e Luna; Eduardo Bacellar Leal Ferreira; Ruy Schneider; Valdir Campos Junior; Eduardo Miranda Freire de Melo (Cf. adufs.org.br: Dossiê: Militarização do governo Bolsonaro e a intervenção nas Instituições Federais de Ensino ). Essa lista precisa ser atualizada, dada uma certa rotatividade nos escalões superiores da administração Bolsonaro. Segundo matéria do G1 Globo, são 6.157 militares da ativa e da reserva no governo atual (https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo ).

Para além disso, não me lembro de tantas matérias jornalísticas sobre os militares durante o regime militar. É verdade que eles não se retiraram completamente da arena política com o fim do mais recente período de autoritarismo que levou vinte e um anos. Essa militarização de agora, por sua vez, é coisa do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, que, através da cooptação de quadros militares da ativa e da reserva, abarrotou os ministérios, empresas estatais e a própria presidência de militares. Para que o leitor tenha uma ideia do que falo a respeito de matérias jornalísticas sobre os militares, transcrevo, no parágrafo seguinte, títulos de reportagens que por si sós dizem muito sobre esse processo de militarização do Estado.

Aqui está uma lista incompleta de matérias sobre os militares de 2019 a 2021:“General Villas Boas revela atuação política do Exército que culminou na eleição de Bolsonaro”; “A descarada mamata bilionária dos militares”; “Salário de general sobe de R$ 22,6 mil para R$ 30,2 com gratificações”; “Exército tem 5 mil generais de pijamas e outros 147 prontos para guerra”; “Militares deixaram de ser vistos como o lado racional do governo”, “Bolsonaro defende não estabelecer teto de gastos para as Forças Armadas”; “Forças Armadas compraram 140 mil quilos de bacalhau por até R$ 150 o quilo, quatro vezes mais que nos atacadistas”; “Mourão diz bobagem e recebe resposta dura mais que oportuna”, “União gasta R$ 128,2 milhões em pensão a filhas de militares em 2 meses”, entre outras e sem falar na reforma da previdência social dos militares.

Afinal, quem são esses homens fardados e usam coturnos? Os militares são servidores públicos federais cujos salários são pagos pelos impostos dos contribuintes brasileiros. Eles não produzem riquezas, mas garantem, em última instância, a ordem econômica que gera impostos que vão para os cofres do Estado federal e dos entes subnacionais. Quais os serviços públicos que prestam aos contribuintes brasileiros? São duas as funções dos militares: garantir a segurança dentro de suas fronteiras e preparar seus quadros para a guerra. É aqui que entra um problema. Como o Brasil não fez guerras no século passado e no começo dessa centúria, certos militares devem ficar impacientes com nada acontecendo, saem de sua torre de marfim e se intrometem na política dos civis.

Não é função dos militares fazer política, mas, seguramente, na história política brasileira, a sua participação na política tem sido constante. Com efeito, desde que o Brasil se tornou uma república através de um golpe militar em 1889, os militares sempre estão incluídos em todos os processos de anistias no Brasil. Formalmente, os militares detêm o monopólio da violência estatal em última instância, quando, diante de suposta ameaça de caos, restauram a ordem social. Mas na prática, os militares brasileiros não conseguem impor a soberania do Estado sobre o território brasileiro nas favelas cariocas e na Amazônia brasileira.

Os militares fazem parte dos estamentos brasileiros. Sim, são estamentos como também o são a classe política e os membros do Judiciário. São “ordens” ou “castas”, autocentradas, dotadas de grande autonomia e cuja reprodução obedecem a uma lógica corporativista. Os militares são privilegiados e adoram privilégios (privilégio significa lei privada). À semelhança de outras corporações estatais, adoram uma “boquinha”. Passam o tempo inteiro se preparando para algo que não virá. Nesse ponto, no governo militar de Bolsonaro, eles abandonaram qualquer prurido ético e se lançaram na corrida aos postos em todos os escalões.

Os militares são cidadãos ordinários, com a diferença de que são armados! É aqui que reside o ponto central. Justamente por serem armados, é fundamental (incomparavelmente mais fundamental) que eles sejam socializados para a democracia, e que aceitem os valores dela e as regras do jogo que os submetem ao poder civil.

Aparentemente, os militares não têm responsabilidade social. Estão aí para garantir a ordem social brasileira, independentemente de suas disparidades e iniquidades sociais. Embora me esforce, sem sucesso, para dizer o contrário, esses homens fardados sempre parecem estar a serviço do patronato brasileiro. Acham-se superiores aos civis, acusando-os de fazer trapalhadas e eles serem obrigados a intervir para restaurar a ordem social. Quando no poder, os militares fazem as mesmas besteiras e colocam em risco as regras do jogo e as instituições democráticas.

Por conta dessa expressiva presença nos aparatos que deveriam ser ocupados por civis, tem ocorrido uma indesejável politização dos quartéis por parte dos militares e de seus apoiadores civis oportunistas. Muitos quadros têm sido aproveitados, gerando descontentamento entre aqueles que ainda não tiveram a sua oportunidade de dobrar os salários e usufruir das benesses do poder. Além disso, muitos militares têm entrado para a política ocupando postos no Congresso. Por último, os militares são eleitores e têm preferências em termos de candidatos e de partidos. Tudo isso junto reforça a politização das instituições militares. Apesar dessa politização ou, por isso mesmo, não existe um pensamento único nas forças militares.

Os militares não prestam contas à sociedade de suas atividades. Deveria haver alguma forma de controle social externo sobre as suas instituições. Do jeito como estão organizadas, as forças militares parecem ser um Estado paralelo ao Estado no Brasil, do qual fazem parte civis ou não. Todavia, um efeito positivo do peso dos militares no atual governo federal tem sido a necessidade de as instituições militares se tornarem mais transparentes, derivada da cobertura da mídia de suas atividades. A despeito disto, em minha opinião, eles deveriam sair do governo de Bolsonaro. A sua permanência como quadros do governo atual só traz desgaste para os militares e para suas corporações. Isso tem sido fonte de perda de legitimidade perante a sociedade civil e a comunidade internacional.

* É professor de Direito da Universidade Federal de Sergipe

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