Marcos Cardoso*
O baronato nacional pode até sofrer, mas não larga o osso. A pífia cobertura jornalística da #29M, quando milhões de brasileiros de todos os estados gritaram no sábado por mais vacinas, menos negacionismo e fora Bolsonaro, frustrou quem acreditou finalmente poder assistir ao fato se sobrepor ao fake, mas quem controla os grandes jornais e TVs não se sensibiliza por qualquer barulho contra seus interesses.
E que interesses são esses? Primeiro, a crença que ainda resiste no projeto dito liberal de Paulo Guedes, a despeito da antipatia crescente ao chefe dele, e os sonhados benefícios que ainda possam resultar; segundo, é o velho e renitente ódio classista mesmo, que desde sempre move os donos dos jornalões contra qualquer agitação que cheire a interesse popular, sempre observada como pauta de esquerda. Quem lembra das Diretas Já?
É preciso afirmar que a manifestação foi o fato jornalístico mais importante do sábado e que atos populares nem tão relevantes mereceram mais destaque da imprensa, como aquela “motociata” e outros animados pelo presidente que desde 2018 nunca desceu do palanque. Depois, os protestos foram legítimos, já que levaram para as ruas a justa indignação de um povo há mais de um ano acuado pela pandemia de covid e que não suporta mais ficar calado, assistindo pela TV o governo errar e a desgraça acontecer.
Vejamos o que disseram as manchetes de domingo de dois ícones do tradicional jornalismo brasileiro. Jornal O Globo: “PIB reaquece e empresas desengavetam R$ 164 bilhões em projetos”. Lá embaixo da página, sem nenhum destaque, uma chamada dos protestos. O jornal O Estado de S. Paulo conseguiu ser ainda mais inacreditável: “Cidades turísticas se reinventam para atrair o home office”. E escondida na página uma insignificante chamada sobre os protestos.
Não basta ter má vontade, tem que passar a impressão de que o país vai às mil maravilhas, afinal, a velha imprensa não defende o Brasil, mas os interesses dela.
A maioria das TVs seguiu o script e a Record chegou à desfaçatez de afirmar que os atos eram pró-auxílio emergencial. Fugiram à regra a Globo News, que acompanhou as manifestações e a Folha de S. Paulo, que deu manchete com os protestos: “Milhares saem às ruas contra Bolsonaro pelo país”. Diga-se que o Jornal Nacional daquele dia e o Fantástico do dia seguinte, ambos da Globo, também noticiaram.
Interessante é que a imprensa mundial retratou bem diferente o que viu acontecer no Brasil. Na Inglaterra, The Guardian estampou como manchetona: “Dezenas de milhares marcham para exigir impeachment de Bolsonaro”. E a crise enfrentada pelo presidente com o avanço da CPI que apura ações e omissões do governo na pandemia apareceu no topo do site da revista The Economist: “Bolsonaro encurralado”. A rede Al Jazeera, do Catar, também lembrou da CPI do genocídio.
A BBC inglesa citou o episódio na capital pernambucana em que a vereadora Liana Cirne (PT) foi agredida com spray de pimenta por um policial e manchetou: “A polícia disparou balas de borracha e gás lacrimogêneo contra os manifestantes”.
Na França, o velho Le Monde estampou uma frase que correu as ruas por aqui: “Ele é mais perigoso que o vírus”. O diário norte-americano New York Post também ouviu de uma manifestante que “o governo Bolsonaro é mais perigoso que o vírus”.
E a agência de notícias Reuters espalhou por veículos do planeta: “Brasileiros de todos os lugares protestam contra resposta de Bolsonaro à covid”.
As marchas também repercutiram na Rússia, onde a agência estatal do Kremlin RT publicou uma série de vídeos, intitulando: “Dezenas de milhares de pessoas marcham contra a resposta do presidente Bolsonaro à Covid no Brasil”. E o indiano Times of India, citando a agência AFP, informou que manifestantes no Rio de Janeiro gritavam “Bolsonaro genocida” e “Vá embora, Bolsovírus”.
O argentino La Nación apontou a força crescente dos protestos e nem a revista Forbes vacilou: “Milhares inundam cidades brasileiras para protestar contra condução de Bolsonaro”.
Parece ambíguo o tratamento vip dispensado pelos veículos de comunicação de um lugar cujo presidente já declarou que o maior problema do seu país é a imprensa. Que a imprensa “não é nem lixo, porque lixo é reciclável. Não serve para nada”. E trata jornalista até com ameaça quando confrontado com uma pergunta que o incomoda: “A vontade é encher tua boca com uma porrada, tá?”
Não por acaso, neste governo o Brasil caiu quatro posições no ranking de liberdade de imprensa feito pela Repórteres sem Fronteiras. A ONG considera que o ambiente para o trabalho de jornalistas se tornou tóxico e isso é uma estratégia governista. Ao mesmo tempo, relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) mapeou 428 ataques a jornalistas em 2020, um aumento de cerca de 106% em comparação ao ano de 2019. A maioria dos ataques partindo de dentro do Palácio do Planalto ou seu entorno.
E soa equivocado que a Rede Globo ainda dispense consideração a quem a trata como inimiga, a ponto de atingi-la no órgão mais sensível, a tesouraria, que deixou de contar R$ 400 milhões em publicidade federal nos dois primeiros anos do governo.
Esse governo que mudou a lógica da distribuição de verbas publicitárias para as TVs abertas, ignorando o critério de dar mais para quem tem mais audiência. A Globo recebeu 48,5% das verbas publicitárias em 2017 e, em 2019, apenas 16,3%. No mesmo período, a Record passou de 26,6% para 42,6%, enquanto o SBT passou de 24,8% para 41%.
Mas a agenda ultraliberal do governo deve acalmar os ânimos da Família Marinho. E da família Mesquita, da família Frias… E assim, de olhos voltados aos próprios interesses, os barões da mídia dão a sua contribuição à consolidação de um projeto que para eles pouco importa se é bom para o país. Mesmo quando fingem fazer diferente.
*Marcos Cardoso é jornalista e escritor. Foi diretor de Redação do Jornal da Cidade, secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, diretor de Comunicação do Tribunal de Contas de Sergipe e é servidor de carreira da UFS. É autor dos livros “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” e do romance “O Anofelino Solerte”.