Por Manoel Moacir Costa Macêdo e Gutemberg Armando Diniz Guerra *
Para os viventes nas bandas pobres do Brasil, as regiões Nordeste e Norte, a fome alcança os seus maiores índices e perversidades. O país retornou ao mapa da fome. Aplausos para a inciativa da cantora norte-americana Beyoncé como noticiado na imprensa brasileira: “Beyoncé lidera campanha contra a fome no Brasil”.
Em números absolutos, em 2018, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente aos alimentos, viviam em insegurança alimentar e 60 % das famílias brasileiras estão em carência alimentar, realidade agravada pelas crises econômica, política e sanitária. As regiões Nordeste e Norte são as mais afetadas pela fome. Em 2020, o índice de insegurança alimentar esteve acima dos 70% no Nordeste e dos 60% no Norte, enquanto o percentual nacional era de 55,2%. A fome afetou 9,0% da população brasileira, 18,1% dos lares do Norte e 13,8% do Nordeste, contradição da persistente fome em um País que colhe safras recordes de alimentos, a exemplo da safra de 274 milhões de toneladas de grãos, prevista para o corrente ano.
A fome não é determinista. No Brasil, a fome não tem causa na falta de comida, mas em políticas governamentais que inviabilizam os pobres de comprar alimento. Ela tem soluções viáveis. No passado recente, o Brasil enfrentou essa dolorosa situação, com o “Programa Fome Zero”, política pública nacional com projetos que propunham “complementar a renda das famílias muito pobres até a linha da pobreza”. Prioridade para a agricultura familiar e rejeição às externalidades negativas, a acumulação e a concentração de terra e renda. Modelo acolhido pela Organização para Agricultura e Alimentação – FAO, da Organização das Nações Unidas – ONU e seguido por países da América Latina, Caribe, África e Ásia. Escreveu Qu Dongyu, Diretor-Geral da FAO: “[…] um dos papéis da FAO é, de fato, aprender com as experiências bem-sucedidas desses países e compartilhar essas lições com outras nações. O Fome Zero do Brasil é um exemplo disso”. O Brasil atingiu o primeiro “Objetivo de Desenvolvimento Social – ODS do Milênio” pela erradicação da fome em 2014. No entanto, em 2018 o País retornou ao “mapa da fome”.
Excetuando os bem-criados dos estratos médio e alto da população urbana brasileira, a artista americana, nascida e criada em Houston, Texas, Estados Unidos, é desconhecida da massa dos miseráveis pátrios. Não quer dizer um desprezo ao talento da cantora, conhecida também pela solidariedade de sua instituição de caridade, a Survivor Foundation com destaque para a sua atuação na política norte-americana. Ela atuou nas campanhas presidenciais dos democratas Bill Clinton, Barack Obama e Joe Biden. Como declama em canção o poeta Milton Nascimento: “o artista tem que ir aonde o povo está”. Beyoncé não tem em sua biografia passagens autoritárias e nem restrições à proteção ambiental do planeta, ativismo social até então concentrado no seu rico, poderoso e imperial País, mas, em crescente desigualdade.
A surpresa é a motivação da campanha de Beyoncé contra a fome no Brasil. É bem verdade que misérias não faltam por aqui. A solidariedade internacional é bem-vinda e não é de hoje o chamado “trabalhadores do mundo uni-vos”. O planeta está globalizado pelas finanças, protecionismo e acumulação. Solidariedade, fome e miséria não constam na agenda global. Possivelmente, a artista norte-americana desconheça em essência a história brasileira e a raiz de nossas mazelas. O seu primeiro contato luso-brasileiro aconteceu na apresentação em Portugal em 2007 e a seguir em 2009 no Brasil, passados 200 anos de nossa descolonização do jugo imperial português e 130 anos da Lei Áurea, a libertação consentida dos escravos. Referências históricas do atraso e misérias tupiniquins, incluindo a mais cruel de todas: a exploração humana pela cor da pele.
Apesar das ações solidárias no seu País e as recentes no nosso, a cantora Beyoncé, como outros candidatos patrocinados pelo capitalismo ocidental e globalização das commodities, não preenchem os méritos para o seletivo “Prêmio Nobel da Paz”. Distinção para poucos mundo afora. Honraria para aqueles que contribuíram para a duradoura paz mundial, pois o tempo faculta “a necessidade do amor e da solidariedade entre as criaturas para a sobrevivência ao caos”. O Brasil jamais recebeu similar premiação, apesar de possuir candidatos valorosos, mas esquecidos, a exemplo de Santa Irmã Dulce dos Pobres, do médium espírita Divaldo Franco e do padre Júlio Lancellotti, figuras humanas diferenciadas em suas histórias de vida, de dedicação ao próximo e da promoção da paz. O “Nobel da Paz” está intrinsicamente vinculado à liberdade, à paz e à vida, jamais à ditadura militar e às políticas que levaram à fome e agressões ambientais no País louvado como o celeiro mundial.
* Manoel Moacir Costa Macêdo e Gutemberg Armando Diniz Guerra são engenheiros agrônomos