Às margens do rio São Francisco, um dos mais importantes do país, a pescadora Jonilda Gomes Barbosa vê cada vez menos peixes em suas redes. Moradora do povoado de Saramén, em Sergipe, Dinha, como é conhecida, diz que o sufoco se agravou na pandemia, com o aumento dos preços da comida e do combustível para mover os barcos.
“O peixe está desaparecendo. O rio está ficando seco, assoreado”, resume Dinha. “Só um grande milagre para voltar a ser como era antes”, diz a pescadora.
Na região onde Dinha vive, a 5 quilômetros da foz, o rio parece estar virando mar. O fenômeno, chamado de intrusão salina, tem uma explicação: a massa de água salgada avança sobre o continente com a força das marés porque há menos água doce do São Francisco correndo. Segundo o monitoramento feito pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), a água do mar chegou a avançar 17 quilômetros adentro do rio.
Até chegar a Sergipe, o São Francisco, que nasce em Minas Gerais, passa por 505 municípios em seis estados. Ele corta o semiárido, tem parte da água desviada pelos canais da transposição e é represado para gerar energia elétrica em nove usinas. A última delas é Xingó, que controla o quanto de água chega para a população ribeirinha na área da foz, na divisa entre Sergipe e Alagoas, estimada em 350 mil habitantes.
Para várias fontes ouvidas pela DW Brasil, o lobby do sistema elétrico tem forte influência sobre toda a gestão da água do São Francisco. E para o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o rio chegou ao limite quando se considera o seu potencial gerador de energia.
“Os reservatórios do rio são para atender os usos múltiplos, e não prioritariamente, ou hegemonicamente, o setor elétrico”, critica Anivaldo Miranda, presidente do comitê, lembrando que a eletricidade produzida na região não abastece apenas o Nordeste, mas também o Sul e Sudeste.
Queda de braço
Uma cascata de usinas hidrelétricas interfere na quantidade de água que chega para a população do baixo São Francisco, região que vai de Paulo Afonso, na Bahia, até a foz, no Atlântico. O início é o reservatório de Sobradinho, na Bahia, construído na década de 1970, e um dos maiores lagos artificiais do mundo, com 320 quilômetros de extensão.
Com previsão de menos chuvas nos próximos meses, a pressão para acumular água nos reservatórios das usinas e “fechar a torneira para o baixo São Francisco é grande, afirmam membros do comitê que participam do debate.
É grande a lista de problemas apontada pelas comunidades do baixo São Francisco. “É puro lodo no fundo do rio e muitas algas. O rio não tem mais força para tirar as algas, fica como se fosse uma água parada, um açude”, diz José Antonio Silva Gonçalves, proprietário rural em Pão de Açúcar, Alagoas. O cultivo de arroz, tradicional na família, teve que ser abandonado pela falta das cheias.
A última expedição científica na região coordenada pela Ufal, que contou com 53 pesquisadores de 18 instituições diferentes, trouxe detalhes do cenário. O volume baixo do rio por longos períodos amplifica os desequilíbrios.
Aumento de doenças
Com menos água, existe possibilidade de aumento de enfermidades, como casos de câncer decorrentes da má qualidade de água e acúmulo de nutrientes vindos devido ao uso de agroquímicos. “As pessoas consomem a água e o pescado, que podem bioacumular contaminantes”, acrescenta Soares. Em algumas áreas mais próximas à foz, o aumento de pacientes hipertensos jovens, sem histórico da doença na família, é relacionado ao provável consumo da água salobra.
A pouca água doce que chega ao oceano também traz impactos preocupantes na região de manguezal, onde a maior salinidade ameaça espécies costeiras, que garantem renda para muitos pescadores.
Maria do Carmo Sobral, da Ufpe, pontua ainda outra disputa pela água. “Cerca de 70% da água da bacia é usada para irrigação. Há grandes usuários no oeste da Bahia, para agricultura de grãos e frutas para a exportação”, comenta. E para esses grandes consumidores, a permissão para retirada de grandes volumes de água nem sempre é alterada quando o nível do rio cai.
Falta de visão socioambiental
Para Carlos Eduardo Ribeiro Junior, fundador da organização não governamental Canoa de Tolda, não existe elemento socioambiental no vocabulário da ANA, das empresas do setor elétrico e do ONS.
“Eles falam que têm que usar a água do São Francisco para ela não ser ‘perdida’ no oceano. Um absurdo”, lamenta. “Não se fala em populações ribeirinhas, meio ambiente, ecossistema, ictiofauna (peixes). A primeira coisa a ser definida, na verdade, teria que ser como o rio tem que chegar à sua foz pra continuar vivo”, argumenta, citando que muitas comunidades bebem “água verde” e comem peixe contaminado.
Para munir a população com conhecimento, a ONG criou em 2019 o InfoSãoFrancisco, um serviço que transforma dados, leis e resultados de reuniões em informações numa linguagem acessível.
Morador da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Mato da Onça, em Pão de Açúcar, criada em 2014, Ribeiro Junior vê o poder da restauração ambiental. O verde da reserva tem trazido de volta animais como jaguatirica e onça parda.
Ações como essa são urgentes para preservar as águas do rio num cenário de mudanças do clima, ressalta a pesquisadora Maria do Carmos Sobral. “Vamos ter outras crises, outros períodos de escassez. As previsões climáticas apontam que no Nordeste teremos dias mais secos, e quando a chuva vier, será de uma forma torrencial. Temos que nos preparar”, alerta.
Fonte: Portal Brasil de Fato (matéria produzida pelo site DW Brasil) Fotos: Agência Brasil