Marcos Cardoso*
Foi no ano de 1984 que a ditadura militar começou a ser definitivamente enterrada e a aurora da democracia dava sinais de que finalmente surgiria. Foi o ano das Diretas Já, o movimento político de cunho popular que pedia a volta das eleições livres para presidente da República e que, mesmo após a derrota da emenda constitucional Dante de Oliveira pelo Congresso Nacional, no dia 25 de abril, mudou o ânimo do brasileiro em relação à política e finalmente a maioria decidiu dizer um basta ao regime que o oprimia já há 20 anos.
Embaladas por personalidades diversas, como Tancredo Neves, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Ulysses Guimarães, Luís Carlos Prestes, Heráclito Sobral Pinto, Sócrates, Mário Lago, Gianfrancesco Guarnieri, Fafá de Belém, Chico Buarque, Beth Carvalho, Martinho da Vila, Osmar Santos e Juca Kfouri, dentre outros, até o derradeiro comício, que juntou 1,5 milhão de almas esperançosas no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, no dia 16 de abril, foram realizadas grandes manifestações populares em todos os estados, incluindo o também famoso comício da Candelária, no Rio de Janeiro, com 1 milhão de pessoas, no dia 10 daquele mês.
O comício de Aracaju, reuniu 30 mil animados sergipanos na Praça Fausto Cardoso no dia 26 de fevereiro. As eleições diretas não passaram, mas a força do movimento popular consegue provocar que pelo menos haja a eleição indireta de um presidente civil no ano seguinte, que seria eleito no colégio eleitoral formado pelos senadores, deputados federais e delegados indicados pelas assembleias legislativas dos estados, reunido no dia 15 de janeiro de 1985.
O Brasil respirava um ar de mudança, o clima de esperança contaminava os ambientes naquele ano que antecedeu o fim da ditadura. Não podia ser diferente nas universidades. E nem seria nas Faculdades Integradas Tiradentes, berço da Unit, onde o debate foi democraticamente duro na quarta turma de Jornalismo que seria formada em Sergipe dois anos depois. Era a turma de Jorge Prado Leite e de Augusto Aranha.
A maioria da turma torcia que Tancredo Neves, PMDB/Frente Liberal, vencesse no colégio eleitoral e fosse eleito o primeiro presidente do Brasil da nova fase de liberdades civis que se avizinhava. Jorge Leite defendia Paulo Maluf, PDS, o candidato de João Batista Figueiredo, o último general presidente da ditadura em estertor. O empresário rico que já maduro decidiu estudar jornalismo tinha mais do que razões ideológicas para defender o candidato do regime.
Dr. Jorge Leite, como muitos o chamavam, embora entre os colegas ele rejeitasse essa forma de tratamento, era um homem conservador, da família mais tradicional de Sergipe, descendente dos barões de Propriá e Japaratuba, neto de Gonçalo Rollemberg do Prado, o Gonçalo da icônica Usina Pedras, filho mais velho do senador Júlio Leite, do PR, e sobrinho do médico Augusto Leite, do Hospital de Cirurgia, além de pai do empresário e político Ivan Leite, que soube multiplicar os bens herdados da família. Ele era amigo de Paulo Maluf, ambos engenheiros formados na Faculdade Politécnica da Universidade de São Paulo, a quem derrotou na disputa pela presidência do Grêmio Politécnico em 1950.
Foi na gestão do sergipano de 23 anos que o grêmio estudantil realizou o sonho de construir a Casa do Politécnico, um colosso de 11 andares que serviria como república estudantil para abrigar os alunos que precisavam de moradia. Jorge também foi um dos fundadores da União Estadual dos Estudantes de São Paulo e foi aluno interno do Colégio Mackenzie.
Mas o que importa dizer é que não era ameno e às vezes nem tão pacífico o embate político na quarta turma de jornalismo, onde naquele momento histórico prosperou o debate animado pelas diferenças entre aquele senhor de 58 anos e os colegas de vinte e poucos anos, alguns liberais e um deles, mais exaltado, filiado ao Partido Comunista Brasileiro, atraído que fora pelo professor Sebastião Figueiredo, então figura respeitável do legendário Partidão em Sergipe.
Depois das aulas e das refregas políticas a maioria se reunia fraternalmente fora da faculdade para comemorar com cerveja e conversas amenas a chegada de uma sexta-feira. Jorge Leite muitas vezes os acompanhava, menos na bebida alcoólica. Nunca bebia. O mesmo se dava quando levava a turma para um almoço na Fazenda Crasto, em Santa Luzia do Itanhy, onde servia sabores e gentilezas. Tornou-se um querido da turma e retribuía com genuína gratidão.
Na fazenda, todos se admiram com a exuberância da Mata do Crasto, uma área de 700 hectares de Mata Atlântica à margem do rio Piauí preservada por iniciativa dele e reconhecida pela União como Reserva Particular de Fauna e Flora desde 1989. Jorge era um ambientalista que foi capaz de enfrentar adversários para proteger uma árvore ou de arriscar a vida para tentar salvar uma cobra que cruzava a estrada, segundo revela o jornalista e advogado Ricardo Leite na biografia “Jorge Leite: um homem chamado trabalho” (Cia. Sul Sergipana de Eletricidade – Sulgipe, 2008).
Era inacreditável que aquele homem dono de tantas posses, inclusive de uma grande empresa distribuidora de energia elétrica fundada por ele, a Sulgipe, e da Rádio Esperança, primeira estação de rádio do interior, também inaugurada por ele e pela qual decidiu estudar comunicação para poder representá-la como profissional da área, terminasse como o melhor aluno da turma de jornalismo, o mais estudioso, o mais assíduo, que nunca perdia uma aula mesmo que tivesse que se deslocar todas as noites de Estância a Aracaju e vice-versa. Mas ele também se divertia e se realizava.
Durante todo o restante da sua profícua existência, concluída no último dia 15 deste mês de agosto aos 95 anos, Jorge Leite jamais deixou de devotar verdadeira amizade pelos colegas da turma de jornalismo. E todos agora velam a saudade do amigo que se foi. Que tenha o merecido descanso.
*Marcos Cardoso é jornalista e escritor. Foi diretor de Redação do Jornal da Cidade, secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, diretor de Comunicação do Tribunal de Contas de Sergipe e é servidor de carreira da UFS. É autor dos livros “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” e do romance “O Anofelino Solerte”.
2 Comments
Que linda homenagem, Marcos. Até me emocionei, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente.
Também me lembrei das “Diretas já”. Na época, morava no Rio com minha avó, pra fazer a faculdade e não perdi os comícios. Todo mundo faltava aula para assistir, de perto, à história do Brasil acontecendo.
Quanta coisa mudou…
Isso mesmo, Sonia. Também acompanhei com muita atenção e entusiasmo. Abraço!