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Quase Memória – Lídio da Cocada

Por Antonio Samarone *

Um senhor franzino, baixinho, pele alva, com um sorriso permanente, fazia em voz alta o seu reclame: “ela é gostosa, saborosa, uma delícia.” Esse pequeno empreendedor era Lídio dos Santos, vendendo as cocadas que ele mesmo produzia.

Lembro-me de Lídio cantando em versos, pelas ruas do Aracaju:

“Sou vendedor de cocada/ Gritando todo o santo dia/ Tem da branca e da preta/ Alô, como vai, dona Maria.”

“Eu trabalho para comer/ Pra de fome não morrer/ O trabalho é grandeza/ O preguiçoso vai sofrer.”

“Amigo falar é fôlego/ Realizar é uma dureza/ Bom mesmo é ter saúde/ E muita comida na mesa.”

Lídio dos Santos nasceu em São Brás, nas Alagoas, em 29 de dezembro de 1915. Filho de pataqueiros, seu Marcionilo e Dona Francisca, trabalhadores rurais sem-terra, que viviam de pequenos ganhos em roças alheias. Lídio possuía três irmãs.

Cedo, a família partiu em busca de um ganha pão. Desembarcaram em Propriá, uma vida nova. Foram trabalhar na fábrica de tecidos e a mãe, dona Francisca, passou a vender arroz doce na porta da fábrica. Saíram da pobreza absoluta.

O doutor Moacir descobriu um caroço no pescoço de Dona Francisca, um caso que necessitava de uma intervenção cirúrgica.

Não existia o SUS, mas o doutor fez uma carta para o famoso Augusto Leite, em Aracaju, solicitando a ajuda do colega.

Em 1926, a família partiu no vagão de carga do trem, em busca de socorro em Aracaju. Lídio tinha 11 anos.

Ao receber a carta e examinar a retirante, o Dr. Augusto Leite autorizou o internamento imediato, no recém-criado hospital de Cirurgia. Em duas semanas dona Francisca recebeu alta, operada pelo médico rico e famoso, o melhor de Sergipe, sem custar um centavo.

A medicina ainda era um sacerdócio.

O pai de Lídio e as irmãs foram trabalhar na fábrica, Lídio, ainda menor, foi ser ajudante de pescaria, nos mangues do Rio do Sal. Logo cedo, aos 14 anos, Lídio já estava no chão da fábrica, ocupando o valioso posto de operário.

Em 1930, Lídio ingressou na classe operária, salário garantido, seis mil réis por semana. Em pouco tempo, Lídio resolveu trabalhar como autônomo, foi jogar tarrafa no Rio do Sal, ser pescador.

Em 1935, Lídio começou a reunir os pescadores, com a proposta do direito de pescar nos viveiros e salinas da região. A Capitania dos Portos autorizou a pesca nos viveiros, desde que houvesse o consentimento dos proprietários.

Fundaram a primeira Colônia de Pesca de Sergipe, a Colônia Z, em 1933.

Lídio da Cocada, sem nenhuma formação política, sem pertencer a nenhum Partido, passou a ser visto como um agitador político, um comunista.

Aprendeu com a vida a enfrentar as injustiças. Aprendeu a ler sozinho, depois de adulto. Não era ateu, acreditava numa divindade natural (uma heresia). Foi militante da igualdade e da fraternidade entre os homens. Desconfiava das religiões, acreditava no trabalho, na justiça e na vergonha do homem.

Ingressou nas hostes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 06 de janeiro de 1936.

Dizia Lídio da Cocada:

“Eu me posicionei contra as malandragens do regime capitalista. Isso aqui não tem conserto, porque os magnatas não querem e a nata da população brasileira é escravocrata, aceita passivamente o regime de escravidão.”

“Lamentavelmente, a maioria dos brasileiros só é “valente” no sambódromo e nas arquibancadas dos campos de futebol.”

“Essa sociedade não fede, mas é podre”, “Tudo o que tem nome tem dono”, dizia Lídio em suas conversas com os pescadores.

Lídio da Cocada foi um militante destemido da liberdade.

Em sua simplicidade, tinha uma visão profunda do mundo:

“Nós, filhos de uma explosão que teria dado origem a vida aqui na Terra, somos apenas sementes do tempo e filhos da natureza. De uma coisa eu tenho certeza, não sou descendente de Adão e Eva.”

Lídio deixou um manuscrito sobre a revolução de 1964, ainda inédito, desconhecido dos historiadores. Lídio tornou-se um “livre pensador”, como ele se definia na velhice, O seu manuscrito é lúcido, sonhador e atual:

“Tenho a pretensão de convocar, através deste livro, o povo brasileiro a não aceitar nunca mais qualquer espécie de golpe militar, venha da direita ou da esquerda. A democracia é a melhor forma de governo.”

Depois do Golpe de 1964, Lídio viveu em completa clandestinidade dentro dos manguezais da grande Aracaju. O seu esconderijo foi ao lado de aratus e caranguejos. Foi caçado ostensivamente pelo Exército.

Lídio da Cocada ficou escondido até a anistia. Passou a ditadura dentro dos manguezais e dos rios de Sergipe, camuflado pela lama, para não ser preso pelo crime de lutar pela liberdade.

Lídio para fugir dos calabouços da ditadura, sobreviveu como homem caranguejo, com a complacência e a solidariedade de pescadores e marisqueiras. Isso em Aracaju. Depois fugiu para o Rio de janeiro.

“Eu, Lídio da Cocada, hoje com mais de 88 anos, acredito que só lutando pela paz, poderemos construir um mundo melhor”, diz ele no manuscrito.

Lídio da Cocada faleceu em 02 de junho de 2015, aos 99 anos.

“Sonhei que estava no céu/ Os anjos todos me abraçando/ Seja bem-vindo meu irmão? Deus está lhe esperando.” – Lídio da Cocada.

* É médico sanitarista

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