Por Marcos Cardoso*
“Saio da vida para entrar na história”. A frase atribuída a Getúlio Vargas, supostamente escrita no fatídico 24 de agosto de 1954, bem que poderia ser adaptada por Lula no saudoso 31 de dezembro de 2010: “Saio da presidência para ser reverenciado pela história”.
A comparação guarda outro propósito: além do ditador e depois mártir Getúlio, ninguém que governou o Brasil republicano ombreou-se como estadista ao operário que nasceu no sertão nordestino, escapou da fome num pau-de-arara para recomeçar a vida numa favela paulista, foi mutilado num torno mecânico, perseguido e preso pela ditadura militar, chegando à Presidência da República para sair de lá como entrou, nos braços do povo. Talvez Juscelino Kubitschek. Talvez.
Mesmo passados tantos anos e acontecimentos depois de 2010, os críticos mais renitentes ainda não se sentem à vontade para reconhecer que é desproporcional, para não dizer inútil, a comparação entre os governos de Lula e do seu antecessor, o príncipe dos sociólogos Fernando Henrique Cardoso. Também não conseguem dizer o contrário, pelo que há de notável em cada uma das trajetórias pessoais e, principalmente, das gestões.
Os números finais de cada governo, especialmente quanto à aprovação popular, confirmam que não há termo de comparação. Lula saiu com 87% de aprovação, FHC, 26%. Um parêntese: Lula saiu mais bem avaliado do que o mito Nelson Mandela quando deixou a presidência da África do Sul (82%) e do que o salvador da pátria Franklin Roosevelt, o homem do New Deal, que morreu durante o quarto mandato à frente do governo dos EUA (66%).
Getúlio Vargas foi o homem que ordenou o Estado organicamente, criando as leis sociais e trabalhistas inovadoras das relações entre os brasileiros enquanto cidadãos ou trabalhadores. Melhor, ele incluiu na agenda política um agente antes excluído, o trabalhador. Tornando possíveis grandes empresas nacionais, como a Petrobras e a Companhia Vale do Rio Doce, para citar apenas as que se tornaram duas gigantes multinacionais, ele deu um impulso ao desenvolvimento do Brasil que, proporcionalmente, só deve encontrar analogia antes em 1808, com a chegada ao Rio de Janeiro de D. João VI e a família real portuguesa. Mas sobre ele haverá sempre a mancha da ditadura implantada no Estado Novo.
Juscelino Kubitscheck foi o desenvolvimentista que soube navegar na maré de progresso econômico dos anos dourados, um homem que se tornou inesquecível pelo seu charme pessoal e suas realizações políticas, principalmente na presidência, sendo a mais notável a fundação de Brasília, um sonho que virou a realidade da capital federal e impulsionou o crescimento do Brasil para além do litoral.
JK foi o presidente que fez o brasileiro perder seu complexo de vira-lata e acreditar na própria capacidade de realização. Para muitos é o brasileiro do século XX. Mas sobre sua biografia pesa o desajuste fiscal e a inflação semeada pela construção desenfreada de Brasília. Se hoje já não temos o glamour, a leveza e a fantasia que envolveram o final dos anos 50, com FHC (depois de Itamar Franco, passando por Lula e até Dilma Rousseff) nos livramos daquela escalada inflacionária e da dívida externa que levariam o País à bancarrota.
Lula uniu o que Getúlio e JK tinham de melhor: a visão social e o espírito desenvolvimentista. Foi o presidente da inclusão social e também o modernizador do capitalismo nacional, superando desconfianças, conquistando o coração dos empresários e fazendo com que voltassem a investir e acreditar no futuro.
O operário cotó de um dedo dobrou os plutocratas, fazendo-os compreender que o acesso dos pobres aos instrumentos do capitalismo é a garantia da longevidade do capital. Seu ciclo de oito anos se encerrou com crescimento chinês do PIB de quase 8%. Para completar, além de manter a inflação sob controle, Lula reduziu a dívida pública e encerrou o mandato com o índice de desemprego no menor índice de sua série histórica, impressionantes 5,7%. A taxa de desemprego na Espanha superava os 20%, em Portugal era de 11% e nos EUA beirava os 10%.
E Lula conquistou a sua popularidade em plena democracia – tendo a sabedoria de rejeitar a tentação do terceiro mandato. Outra demonstração de grandeza: quando foi lançado candidato à Secretaria-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) pelo presidente da Bolívia, Evo Morales, ele descartou com sabedoria qualquer pretensão ao cargo. “Eu acho que a ONU precisa ser dirigida por algum técnico competente da ONU, não pode ter um político forte na ONU porque (o secretário-geral) não pode ser maior que os presidentes dos países”.
O homem que ajudou a implodir a Alca e balançou o G-8, colocando o Brasil no centro dos debates políticos e econômicos internacionais, provavelmente não teria medo de encarar um novo desafio. Mas já pensou se a ONU fosse presidida pelo presidente dos EUA?
Como disse o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro, a despeito da imprensa nacional e de “um quarteto de embaixadores aposentados que estão sempre na televisão, batendo em Celso Amorim e Lula”, como a sentir dores de cotovelo pelo sucesso da política externa: “Nunca vi o Brasil com tanto prestígio”.
Mas, certamente o mais importante, nenhum presidente teve a representatividade de Lula. Representatividade política, como manifestação de vontade, e social. É até hoje quem melhor representou e tornou factível o anseio e a esperança do povo brasileiro.
Nenhum representante político jamais demonstrou conhecer tanto da alma desse povo. Por experiência própria, garantiu o acesso dos estudantes pobres às universidades públicas e privadas. O ProUni possibilitou a milhares de brasileiros pobres o acesso à universidade. Será que ainda é preciso dizer que o torneiro mecânico formado no Senai recuperou a importância das universidades federais e das escolas técnicas, que herdara inteiramente sucateadas?
O segredo de Lula foi confiar no povo e priorizar os mais pobres, disse Marcelo Déda, ao ser empossado no segundo mandato de governador, em janeiro de 2011: “Foi entender a necessidade de um projeto nacional, integrador, capaz de reduzir desigualdades, aumentar a auto-estima do brasileiro e inserir de forma soberana o Brasil no mercado internacional e na política mundial”.
Nunca antes na história deste País, graças a Lula, o povo foi protagonista. E por conhecer o povo como só um igual conhece, desde os banguelas, os descalços, os rotos e deserdados até os trabalhadores e os empresários, Lula conquistou para a sua causa aqueles que ideologicamente o seguiam e realizou aquilo que a esquerda sonha desde antes de Marx: a revolução. Mas uma revolução adaptada ao novo milênio, iniciado no século XXI.
Pregando como um velho hippie a paz e o amor, sem empunhar nenhuma arma letal, retirou mais de 20 milhões de brasileiros da miséria e elevou outros 30 milhões à classe consumidora, à deslumbrada classe média. Como disse Elio Gaspari a quem um dia afirmou que o Brasil era uma Belíndia, “Lula retirou da Índia brasileira o equivalente à população de toda uma Bélgica”. O mundo assistiu ao acontecimento de uma revolução pacífica. A revolução Lula.
*Jornalista