Por Antonio Samarone *
A morte era um acontecimento público.
Dona Amélia já voltou desenganada do Aracaju. O médico do Sanatório não conseguiu tratá-la. A sua tísica era galopante.
Na chegada, recebeu a visita de Dr. Pedro que disse o mesmo: “podem chamar o padre”. A visita do médico foi vista como um sinal de prestígio da moribunda.
Dona Amélia era viúva e morava só. Era fogueteira. Vivia disso. Morava numa casa ampla, chão batido e sem móveis. A sala da frente era abarrotada de peido de veio, chuvinha, taquarí, busca pé e bomba de breu.
A sua agonia de morte foi acompanhada pela vizinhança durante quinze dias.
Fecharam as janelas, acederam velas e puseram um vaso de água benta na entrada. Formou-se uma grande fila, dia e noite, a se despedir de Dona Amélia.
Menino não podia entrar. Eu tinha sete anos e entrei escondido de mamãe. Deram uma brecha e eu entrei. Foi o meu primeiro contato com a morte. Me despedi de dona Amélia com um olhar, não sabia o que dizer. Como até hoje não sei.
Numa segunda-feira cinzenta, o sino começou a tocar à finados e uma procissão desceu o Beco Novo, saindo da Igreja. A extrema unção ainda era o sacramento dos moribundos. Lembro-me dos detalhes.
Dona Amélia era uma mulher branquinha, de olhos claros, cabelos brancos, parecia uma idosa de cem anos. Morreu aos 67 anos. Dizia-se que ela possuía dinheiro enterrado. Foi a segunda esposa de um viúvo rico, comerciante de fumo.
Dona Amélia vivia de preto, no máximo cinza, era o que convinha as viúvas daqueles tempos.
Na época de São João, todo o dinheirinho que os meninos pegavam, corriam para casa de Dona Amélia. Dizia os meninos: – “Quero cinco cruzeiros de peido de veio”. Ela respondia: “pegue vinte ali no canto”. E não fiscalizava. A gente sempre contava a mais. Ela sabia e ficava rindo.
Dona Amélia só saia para a Igreja, a feira e para comprar fumo na bodega de Dona Rosita. Ela gostava de mascar e fumava um cachimbo cheiroso. Só usava fumo do Lagarto ou de Arapiraca, e Dona Rosita vendia.
Mascar fumo era moda!
Mamãe também mascava capas de fumo, para ficar com a boca anestesiada, dizia ela. Talvez uma herança tupinambá. Mascava e cuspia. Um cuspe amarronzado.
Dona Amélia morreu sossegada, solenemente, sem grandes aflições ou angústias metafísicas. Dona Amélia era só, não houve luto.
Hoje, a morte é escondida. Morre-se solitariamente em hospitais, em silencio. O coração para sem fazer barulho. Parte-se, sem nada a dizer.
* É médico sanitarista