Por Antonio Samarone *
O primeiro critério das Academias de Letras para avaliar um livro é que ele fique em pé, se sustente em pé, sem encosto. O opúsculo “Sinfonia da Desesperança”, de Carlos Cauê, seria reprovado.
Após uma epidemia de livros banais em Sergipe, nasceu um bom livro. “Sinfonia da Desesperança”. É sucinto e profundo.
A quarentena abriu o coração e soltou a língua do poeta. A Sinfonia da Desesperança não é um conto de vigário. “O Anjo Gabriel soltou a língua de Zacarias”. (Para quem não é biblado, Zacarias é o pai de João Batista.
Carlos Cauê trata dos sepultamentos em valas comuns”. A fila de carros fúnebres na Itália. mostrada na TV, foi uma lembrança atávica das carroças recolhendo as vítimas da Peste Negra, no fim da Idade Média. A morte como espetáculo.
O Poeta Cauê trata da verdade da dor, numa sociedade paliativa que não enxerga utilidade na dor. A dor foi confinada ao discurso médico, o Poeta recupera a dor redentora. Sonha que a Pandemia pode queimar a semente do mal, e parir um mundo novo. Desconsidera que a gripe espanhola pariu o nazi fascismo.
A Sinfonia da Desesperança trata do tédio e da solidão humana, trata do amor em tempos do cólera. O poeta conta a sua vivência com a quarentena, criando personagens, como faz os artistas. É esse detalhe que transforma o causo, a crônica em conto. Eterniza a narrativa.
O inconsciente do poeta aflora na descrição da Covid-19. Atavicamente, recupera a imagem da tuberculose, a peste branca, dos boêmios e poetas.
Carlos Cauê, estabelecendo os limites, imita a narrativa de Boccaccio, em Decameron (1353), relatando a Peste Negra em Florença.
Tudo faz sentido. O Cemitério é São Lázaro, o mesmo santo dos lazaretos e dos lazarentos. Cauê lembra da lepra e dos leprosos. Sabiamente, o coveiro não chama a Peste pelo nome, é a doença.
O livro de Cauê retoma uma velha e surrada teologia humanista. Coloca-se com um anjo rebelde repetindo a tese: se Deus é bom e Justo, por castiga os humanos com essa Peste. Seria ciúmes da grandeza humana?
Santo Agostinho já resolveu esse enigma, mas o poeta é um humanista de raiz, um filho do iluminismo. O poeta continua inconformado com a expulsão do Paraíso.
Acho que todo o castigo para o homem é pouco, não por sua grandeza, mas pela vilania, pela destruição que ele está fazendo do Planeta.
Já se escreveu sobre a Pandemia de várias janelas. Os efeitos econômicos, sanitários, políticos, culturais, médicos, históricos. O poeta muda os rumos da conversa, o livro “Sinfonia da Desesperança” trata dos estragos da Peste na alma humana.
Li, esperando a morte da esperança. Nietzsche matou Deus. Pelo título do livro, pensei que Cauê mataria a esperança.
“Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate”, segundo Dante, é a inscrição no portão de entrada do Inferno.
A minha surpresa:
O livro de Carlos Cauê é um hino de louvor a esperança.
* É médico sanitaristas