Por Antonio Samarone *
A medicina artesanal centrava-se na relação médico/paciente. O trabalho médico era o de cuidar das pessoas, enfrentar o sofrimento humano em sua complexidade e observar as subjetividades, os modos de vida, as crenças e valores de cada um.
Era uma medicina humanizada por tratar-se de uma relação entre pessoas (o médico e o paciente). Exigia conhecimento científico e sensibilidade (arte).
A Saúde se transformou no maior desejo da humanidade, maior até que a salvação. O corpo substituiu a alma. Ser saudável virou uma aspiração universal, um direito estabelecido nas Constituições.
Uma parcela da sociedade dispensa Deus, mas não existe os que dispensem a saúde, preferindo a doença, a dor e o sofrimento.
A desejo de saúde é um consenso, importante demais para ficar sob o comando da filantropia e de médicos.
No final do século XX, a medicina se transformou numa atividade econômica, num complexo médico industrial, comandada pelas indústrias farmacêutica e de insumos, e pelo capital financeiro através dos Planos de Saúde.
O trabalho médico passou a obedecer às leis do mercado.
A dificuldade foi transformar o trabalho médico em mercadoria, impessoal, padronizado e voltado para o lucro. O cuidado médico era cheio de subjetividades, incompatível com a forma de mercadoria.
Duas adequações foram necessárias para transforma o trabalho em mercadoria: o centro da atenção saiu do doente (paciente) e passou para a doença (objeto). O paciente virou consumidor.
O serviço médico se transformou de cuidados em procedimentos. Os serviços médicos passaram a oferecer procedimentos uniformes, impessoais e quantificáveis, atendendo as necessidades de planejamento do lucro.
Os procedimentos são serviços médicos em sua forma de mercadoria. Os pacientes, as pessoas, o ser humano saíram de cena entrando, o corpo, as doenças, os sistemas fisiológicos, o objeto. Deu-se a desumanização da medicina.
As escolas médicas legitimam essa medicina de mercado, criando ideologicamente a ilusão que os procedimentos são baseados em evidências científicas. Nos ambientes universitários predomina uma áurea de pseudociência, uma simulação, onde o pensamento crítico foi afastado.
Boa parte dos professores doutores entram no jogo de boa-fé, outros nem tanto, apenas percebem as regras para legitimação profissional nesse mundo do faz de conta.
O trabalho médico transformado em mercadoria, necessita da legitimação científica, real ou imaginada.
Um grupo de médicos incomodados com a desumanização, criou no Conselho Federal de Medicina um grupo de humanidades (não sei se ainda existe). A saída enxergada foi tentar introduzir nos cursos de medicina, conteúdos de filosofia, história e artes. Os estudantes precisariam ler os clássicos da literatura e ouvir boa música.
Introduziu-se nos cursos de medicina, uma história louvatória contando a da vida dos grandes médicos, para servir de exemplo. Claro que não deu certo, o problema é outro.
Os serviços médicos se tornaram um bem de consumo sujeito as leis de mercado. A oferta de procedimentos é orientada pelo valor de troca. Não estou dizendo que os procedimentos não tenham serventia, valor de uso, não, apenas que a lógica do consumo é o lucro e não o bem-estar dos usuários.
Um poderoso marketing convence a sociedade que a saúde depende desse consumo, de preferência de forma preventiva. A saúde deixa de ser qualidade de vida, mas o consumo de serviços médicos.
Só existem três mercados onde conseguem transformar os seus consumidores em usuários: os mercados das drogas, das redes sociais e da medicina.
Não sei ainda se existe a possibilidade de humanizar a medicina de mercado.
A saída não seria a ressuscitação do “paciente” da medicina artesanal. Paciente era um personagem passivo, obediente, disciplinado em seguir as orientações médicas. A relação era humanizada, mas de dependência.
Talvez a humanização passe pela abordagem holística, das pessoas que procuram os serviços médicos em busca de aliviar os seus sofrimentos.
Humanizar é oferecer uma medicina voltada para as pessoas.
A desumanização da medicina começou com a troca do sacerdócio (ócio sagrado) pelo negócio (negação do ócio).
A medicina voltada para a ciência é um biombo para esconder o mercado.
* É médico sanitarista