Por Antonio Samarone *
Se cortar as raízes a gente vira outro, perde a identidade. Aprendi na infância.
Encardido nasceu, se criou e vive até hoje no Tabuleiro dos Caboclos, um antigo quilombo em Itabaiana. A família de artesões do barro, faziam panelas e moringas. Encardido era um craque. Um sarará mirradinho que fazia malabarismo com a bola.
A pobreza não permitiu a sua carreira no futebol. Precisou trabalhar muito cedo, virou sapateiro. Não passou de meia esquerda do time de Mané Barraca.
A minha cabeça anda cheia de esquecimentos, não lembrava mais de Encardido. Acho que ele se chama Raimundo ou Oswaldo, tive vergonha de perguntar.
Reencontrei Encardido na Praia, nesse final de ano. Nos olhamos desconfiados, com aquele pensamento: acho que conheço esse mal-assombrado. Dito e feito, era o próprio.
Relembramos o passado com nostalgia. Muita coisa, Eu tinha esquecido.
Ele lembrou-me de ter me dado um banho de cuia (eu tinha esquecido), do Jegue da Fazenda Grande, dos roubos de melancias no sítio de Zé Mosquito, dos carnavais no Clube do Trabalhador e das peladas, no campinho do antigo Etelvino Mendonça. Uma infância comum.
O sonho de consumo de Encardido na infância era o pão com cocada puxa, da bodega de Dona Rosita. Eu adorava. Rimos muito com essa lembrança.
A turma de Encardido na praia era grande, fretaram uma Van. Ele me pareceu feliz. Em nenhum momento reclamou de nada. Eu quis puxar assunto político e ele riu: “pode deixar que eu voto em Lula”. E mudou o rumo da prosa.
Encardido vive fazendo lixeiras de borracha e outros artefatos e, quando aparece, ainda bota meia sola em sapatos. A indústria acabou com a profissão de sapateiro. Ele está aposentado pelo INPS, com o salário-mínimo.
Me despedi desejando Feliz Ano Novo. Encardido deu uma gaitada.
“Eu só peço a Deus, que a desigualdade nunca me seja indiferente” – Mercedes Sosa.
* É médico sanitarista