Por Lelê Teles *
“liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda” Cecília Meireles
O que Cecília não diz nesse poema aforístico é que cada um entende a liberdade à sua maneira.
Para o encarcerado, por exemplo, liberdade é ver o sol nascer redondo.
Porém, uma vez liberto da tranca, o sujeito pobre e preto percebe que nem de longe ele está livre.
Se ele tentar cobrar o salário atrasado, corre o risco de ser espancado até a morte; se tentar pegar as chaves de casa na mochila, pode ser alvejado pelo vizinho; se optar por ser um simples vendedor de balas, a qualquer momento um peême à paisana poderá lhe meter uma bala nos peitos.
A liberdade é, num mundo desigual, um conceito relativo.
As mulheres ocidentais que vão à praia de fio dental julgam que são livres quando se comparam com as sista que usam burka ou que vão à praia de burkini.
No entanto, essa liberdade feminina ocidental é apenas uma concessão do patriarcado, e ela tem limites.
E quem diabos define esses limites senão os homens?
Liberdade e fraternidade; lembram do Lugar de Falo de que falei em outro texto?
Guardiões da liberdade, os homens têm o poder de proibir que uma mulher faça topless, mas as mulheres jamais poderão impedir que um homem ande por aí sem camisa.
Por séculos as mulheres foram impedidas de votar, mas as mulheres nunca puderam proibir o voto masculino.
É masculino o poder de proibir que mulheres amamentem em locais públicos; a liberdade de desnudar o seio para alimentar uma cria é limitada pela tara erótica e pornográfica da mentalidade machista.
Percebe que tem gente que tem mais liberdade que outra gente.
Os liberais brancos de outrora, veja essa, eram livres para tirar a liberdade de outras pessoas; e eles gozaram dessa liberdade com grande galhardia: escravizaram, estupraram, torturaram e mutilaram sem piedade e sem freios.
Os limites só vieram bem mais tarde, e por razões econômicas e não humanitárias.
Num sentido filosófico, liberdade está associada ao poder de escolha, à autonomia do indivíduo; nesse sentido, só os seres humanos são verdadeiramente livres.
Veja que fuleiragem.
Um pássaro não escolhe voar e nem viver onde vive ou como vive, ele apenas reproduz a vida pássara, acriticamente.
Sartre chegou mesmo a afirmar que o homem (ele quis dizer o ser humano) estava condenado a ser livre.
Veja você.
Imagina o juiz batendo o martelo ruidosamente e sentenciando: “o senhor está condenado à liberdade”.
E o infeliz: “não, por favor dotô, eu quero um patrão, as amarras, o cabresto, a coleira, os grilhões, a aliança de casamento…”
Por falar em casamento, as religiões também têm sua definição de liberdade.
O cristianismo, o budismo e o espiritismo falam em livre-arbítrio.
Deus fez homens e mulheres livres, com autonomia para tomar decisões e fazer escolhas entre o bem e o mal; porém, se fizerem escolhas erradas satanás toma conta.
Até no livre-arbítrio a liberdade é arbitrada, e como bem o disse Mano Brown: “o promotor é só um homem, Deus é o juiz”.
O que a religião define como pecado, que é quando o desgraçado ultrapassa o limite da liberdade, a justiça tipifica como crime ou infração.
A vida civil, façamos uma pausa por aqui, é orientada por leis, são elas que estipulam e impõem limites, freios e amarras para regular a coesão social e buscar uma harmonia nas relações entre os animais cívicos, termo criado por Aristóteles, que cagava pra mulher e pra escravo.
Fiz todo esse preâmbulo sofisticado para chegar à conversa mole do fundão da sala de aula.
Sim, o assunto não se esgota, voltemos ao Pequeno Kim, ao Monark e ao Adrilles.
Esses sujeitos são livres para expressarem o que expressaram?
Sim e não.
Sim porque expressaram, elementar!
Ambos gozavam de plena liberdade de expressão, tinham diante de si microfones abertos e larga audiência, a fala era ao vivo e eles não estavam sob censura prévia.
Gozavam da liberdade democrática, cujos limites estão bem definidos pelo ordenamento jurídico.
Calúnia, injúria, difamação e racismo, por exemplo, estão tipificados em nosso código penal.
Monark, em um tuíte de 2021 chegou a perguntar se ter opinião racista era crime, para ele “é a ação que faz o crime e não a opinião”.
Mas parece que o medo da tranca e a perda do trampo o fez mudar de opinião. Botou a culpa na cachaça.
Se beber não divirja, sobretudo da lei.
A lei pune mesmo os bêbados.
O sujeito não pode simplesmente sair à rua cheio da manguaça e passar a mão na bunda do guarda; isso é desacato.
“Ah, foi mal seo guarda, é que eu tomei uns corotes”.
Pois agora vais tomar uns cocorotes.
O Matador de Passarinhos já havia alertado o podcaster que ele não estava em um boteco fumando vape e falando idiotices para um grupo de amigos idiotas, ele estava a ser ouvido por milhões de pessoas e suas ideias, ou a falta delas, têm o poder de influenciar as pessoas.
Dizer: “eu acho que o nazista tinha que ter um partido nazista reconhecido por lei”, é perigoso, porque o sujeito parece querer obliterar a liberdade que a democracia nos assegura.
O nazismo é uma ideologia racial, que se apoia na ideia de que há uma raça superior e que as outras devem ser eliminadas.
O capitalismo também se apoia na ideia de uma raça superior, o macho branco, mas o macho branco não prega abertamente a eliminação das outras raças, ele só as colocam para fritar hambúrgueres e cortar a grama dos seus quintais.
A ideia de liberdade libertina, essa molecagem irresponsável e inculta, é cria do bolsonarismo olavista e fruto da mitificação de um idiota e da mistificação de um energúmeno que defendem uma noção confusa e tosca de liberdade.
Essa molecada barbada precisa compreender que o tempo da liberdade desenfreada era um tempo de selvageria, exercida por um homo ergaster, por um neandertal…
A partir do momento em que a moçada começou a trocar ideias, a trocar artefatos e a trocar irmãs (como diria o Levi-Strauss), a cosia passou a ter regras.
Quem fala o que quer acaba por ouvir o que não quer, como reza o adágio.
Eva e Adão decidiram dar ouvidos a uma cobra – que não tem ouvidos – e acabaram se tornando os primeiros sem teto da história.
O pai botou filho e nora pra fora de casa, que era um paraíso, e os puniu com o suor do trabalho e com as dores do parto.
O Flow era o Paraíso do Monark, mas ele quis deixar a cobra fumar com ele e deu no que deu.
O Paraíso do Kim é o parlamento, Deus há de castigá-lo antes que ele castigue seus críticos.
Adrilles, coitado, esse é o inferno.
E last but not least, vamos fechar essa bagaça metendo o Rui Costa Pimenta na história.
Pimenta – que nos olhos dos outros é refresco – sentou na garupa de Monark e defendeu a fala idiota do podcaster com o argumento de que defendia a liberdade de expressão.
Muitas vezes, a defesa é o pior ataque.
Rui, em verdade, nem defendia Monark, o presidente do partido da roda dentada, do alto de sua jactante soberba, apenas atacava os canhotas lacradores, que ele acusa de identitaristas mirins e fantoches do império.
Foi nessa toada que Rui defendeu o voto impresso, o talibã, o Robinho, o Maurício de Souza e a estátua do Borba Gato.
Rui é a clara expressão de que a liberdade de expressão no Brasil está assegurada.
O que um sujeito não pode defender é a criação de um partido nazista, mas defender o boneco de um bandeirante pode, porque isso não faz mal a ninguém.
Saravá.
* É jornalista, publicitário e roteirista.