Por Gilfrancisco Santos *
Conheci bem o poeta José Luiz de Carvalho Filho ou simplesmente, Carvalho Filho, por várias vezes estive em sua residência, na casa da Travessa dos Barris (casa da esquina). Nascido na casa dos pais, na Ladeira dos Aflitos, em Salvador, no dia 11 de junho de 1908, terceiro filho de José Luiz de Carvalho, guarda livros da Companhia de Seguros Aliança da Bahia e de Julieta Teonila Freire de Carvalho. Aos 4 anos a família mudou-se para o bairro dos Barris. Estudou no Colégio Antônio Vieira e completou o secundário no Colégio da Bahia e ingressou na antiga Faculdade Livre de Direito da Bahia, bacharelando-se em 1934. A partir da conclusão do curso de Direito exerce vários cargos públicos: Promotor Público, Procurador da Justiça e Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, aposentando-se como Presidente do TJE em 1978. Casou-se com Olga Vieira de Sá, em 1935, com quem teve três filhos: Thereza Maria de Sá Carvalho, José Luiz de Carvalho Neto e Olga Maria de Sá Carvalho. Em 1958, o poeta ingressa na Academia de Letras da Bahia e ocupa a cadeira de nº 31, cujo fundador foi o acadêmico Ernesto Simões da Silva Freitas Filho (1886-1957).
Movimento Modernista
Carvalho Filho ingressa no ambiente literário do movimento modernista na Bahia, em 1928, grupo que se formou em torno da revista Arco & Flexa, ao lado de Manuel Pinto de Aguiar (1910-1991), Ramayana de Chevalier (1909-1972), Castellar Sampaio, Hélio Simões (1910-1987), Carlos Chiacchio (1884-1947), Godofredo Filho (1904-1992), Eurico Alves (1909-1974) e Eugênio Gomes (1897-1972). Segundo o crítico baiano de renome internacional, Eugênio Gomes, em artigo O Poeta e o Mito, Correio da Manhã (RJ), edição de 2 de agosto de 1958, nos conta o seguinte:
No início do movimento modernista na Bahia, em 1928, houve súbita e auspiciosa revelação: a de Carvalho Filho. Jamais tinha ouvido falar sequer em seu nome, quando ele surge, certa noite, para se incorporar ao nosso grupo, no rumoroso ponto em que Carlos Chiacchio assentava transitoriamente a sua tenda de comando. Viu-se logo que seria um companheiro ideal, porque, ainda muito jovem os seus primeiros poemas já refletiam as tendências em voga, sem trair nenhum vínculo a quaisquer preconceitos tradicionais de pensamento ou forma. Pouco depois, estreou com um livro de poemas “Rondas”, no qual se encontra a seiva estudante de um talento juvenil, que só precisava de experiência, mediação e estudo para se afirmar definitivamente.
Rondas
Publicado em 1928, pela Livraria Duas Américas, o jornalista Rafael Barbosa, escreve n’O Globo de 5 de novembro de 1928 o seguinte:
Carvalho Filho terá vinte ou pouco mais de vinte anos. Percebe-se, no seu livro, esse verdor pletórico da cidade, onde há ritmos acessos de exaltação, de eloquência verbal desbordante, de musicalidade por vezes excessiva nos vocábulos preciosos, ainda de predileções remotas. Mas não há sonetos, nem espartilhos métricos, nem debilidades de inspiração e de forma. Como estreia, o autor de Rondas é dos que mais lindamente se afirmam no momento. Mais alguns passos, estará integrado no melhor do nosso modernismo em letras, rompendo os últimos laços das influências que passaram. Carvalho Filho, aliás, é um poeta da época. Nada de trovador, nem mesureiro sentimental das rimas. Quando muito um lírico da imaginação, fazendo passar o espetáculo do mundo exterior pelo palco de uma sensibilidade susceptível das vibrações mais voluptuosas da beleza. E tem fôlego, que se confirma na extensão de todos os seus poemas, a se estenderem por páginas e páginas. Por isso, de preferência, a transcrição deste “Irrevelado”, que é dos menores, sendo também expressivo da maneira dos outros:
Irrevelado
Essa dor…
Vibração sem cadência
em crepúsculo de outono
e em neblina interior
que tanto ensombra a alma…
… bruma oculta pousada
entre os nervos em febre…
… luz de focos invisíveis
revelando à adolescência
as faces impuras dos sentidos
que o ser sonhava fossem
não o recesso de misteriosas essências
mas as fontes de iniciação na angústia.
Essa dor…
A alma para, atônita,
quando a tenta libertar
em seu poço e segredo.
Não é carícia da saudade
nem intuição da tristeza.
Vem do calor da vida
circulando no corpo
e da luz do sangue
brotando na alma.
Me aproximei do poeta nos anos setenta, e não foi difícil compartilhar de sua amizade. Na época, eu trabalhava na Reitoria da Universidade Federal da Bahia e fui colega de sua filha Thereza Carvalho, bibliotecária e documentarista do antigo Departamento Cultural da UFBA., à época dirigido pelo professor Calderón de La Vara. Retornei a procurá-lo, no início dos anos 90, quando pesquisava sobre o poeta Godofredo Filho, para elaboração de um trabalho acadêmico de conclusão de curso. E recebi de suas mãos autografado, um exemplar do livro Poemas, publicado em 1988, um volume de 548 páginas, que reuni seus livros publicados anteriormente, e figuram na edição, alguns poemas inéditos. Isso fez com que me aproximasse cada vez mais da obra do autor baiano.
Face Oculta.
Este livro, publicado em 1947, 262 páginas com formosas ilustrações do desenhista e gravador Osvaldo Goeldi (1895-1961), edição custeada pelo próprio autor, com tiragem de duzentos exemplares, é um livro inovador onde o poeta adota os mesmos princípios da poesia moderna, versos soltos, como o de todos os poetas modernos. E nessa forma, sua poesia ganha um elemento novo. Carvalho Filho, poeta de raras qualidades de finura e densidade, continua exigindo novos estudos. Quando foi publicado Poemas, o Mestre Afrânio Coutinho, em artigo escrito para o jornal A Tarde, Um grande poeta, em 1991 republicado na revista da Academia de Letras da Bahia, afirma que:
O livro que reúne agora toda a produção do poeta vai colocá-lo mais acessível aos críticos, que não lhe regatearão o lugar de destaque que é o seu na literatura brasileira.
Poema em Baudelaire
Confesso: não sei o que é rir, não sei
o que é chorar em face do mistério.
Mas neste instante de fogos extintos fumegantes
e de brumas marinhas anoitecendo a tarde,
neste instante de asas mortas decepadas
flutuando em águas oleosas
e de cruzes de lenho verde resinando,
neste instante sem sinos, de sinos mudos
com os cálices para o alto onde
apodrecem pétalas em seiva exangue,
neste instante de horizontes incendiados
e da plena expectativa do canto da tempestade
que virá,
neste instante em que os espelhos, frios
de insensibilidade, se recusam aos apelos
das imagens aflitas e repelem
as almas tementes que se procuram,
ah! neste instante
de raízes expostas repelidas pela terra
que nos reste chorar aos pés do azul da tarde.
Chorar antes do desespero,
no silêncio interior dos frutos do deserto.
Chorar na solidão das fronteiras extremas.
Chorar em meditação
pela fugaz eternidade da criatura de Deus.
Assim seja.
Seleção de Poemas
Em 1955, o movimento cultural na Bahia se intensifica, quer com a formação de grupos, quer com a realização de conferências sobre assuntos os mais momentosos ou ainda, com a criação de revistas e jornais literários e, até de editoras. Salvador era uma das capitais de províncias onde o panorama literário e artístico se oferecia aos olhos da metrópole como dos mais animador. Ao lado do grupo dos Caderno da Bahia, vale ressaltar o trabalho pioneiro de Pinto de Aguiar e Armando Sousa, dirigentes da Livraria Progresso Editora, que publica Seleção de Poemas, de Carvalho Filho, que revela as diversas fases por que tem passado a sua obra poética, da adolescência à maturidade, conservando, todavia, o admirável conteúdo lírico. Sobre o mesmo livro, o jornalista Adalmir da Cunha Miranda, registra em sua coluna “Crônica de Salvador” do Suplemento Literário (RJ), de 27 de abril, 1957:
Creio que a escolha abrange a totalidade dos seus livros publicados: Plenitude (1930), Integração (1934) e Face Oculta (1947), todos editados em Salvador. Seleção de Poemas está dividido em três partes, talvez mais rigorosamente, em duas partes, já que a segunda é representada por um poema, apenas, cuja ambiência e temática se distanciam das que presidem à fatura dos poemas da primeira e última parte. E este poema “Piatã”, pela sua situação e atmosfera, intervalar, talvez anuncie apenas um câmbio sutil do lirismo do poeta no decurso da Seleção. (…)
Mais adiante Adalmir, conclui:
Pelo exposto, não hesito em atribuir a Carvalho Filho méritos ponderáveis nos quadros da poesia brasileira contemporânea. E, se não é o meu poeta, aquele cujas inquietações e certezas se firmaram com as minhas, eu seria desonesto se não tentasse aferir os seus méritos. E afirmá-las. Principalmente se estes poder ser inferidos de valores especificamente estéticos que repousam na sua obra. Se os nossos caminhos não se unem, em alguns pontos, em outros se aproximam, tal é o poder da arte de promover coincidências humanas. Há no fim dos caminhos de todos os homens e poetas que se prezam uma esperança. No zelo com que damos vida a essa esperança e na dignidade com que caminhos diversos podem ser trilhados há uma identidade que possibilita e realiza o diálogo.
O Deserto e a Loucura
Sobre O Deserto e a Loucura, publicado pela Edições Macunaíma, capa e ilustrações de Calasans Neto, impressos 500 exemplares, em 1976, João Carlos Teixeira Gomes, em seus Apontamentos sobre a Evolução da Literatura Baiana, publicado no volume Camões Contestador e outros ensaios, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1979, afirma que:
Em O Deserto e a Loucura, permanece essa poética do abstrato, essas tendências para a metaforizarão das coisas impalpáveis. Persistem obstinadas, as palavras-símbolo, as palavras-chave: cinza, tempo, azul, silêncio, sombra, sono, mito, sonho, mistério, morte, eternidade, ânsia de evasão e conhecimento, fuga obsessiva do real concreto…
Vejamos o poema Genealogia do Tempo:
O abismo gerou o mistério.
O mistério gerou o espírito,
O espírito gerou o homem,
O homem gerou a planície,
A planície gerou o deserto,
O deserto gerou o sonho
O sonhou gerou a montanha,
A montanha gerou o horizonte,
O horizonte gerou a loucura,
A loucura gerou a dor,
A dor gerou o medo,
O medo gerou o mito,
O mito gerou o destino,
O destino gerou a fé,
A fé gerou a esperança,
A esperança gerou o tempo,
O tempo gerou o caos.
Em 2 de setembro de 1994, aos 86 anos, morria em sua residência o último poeta modernista da Bahia, que juntamente com Godofredo Filho, foi o primeiro poeta baiano que abraçou os ideais da semana de Arte Moderna de 22. Como disse o confrade Itazil Benício dos Santos:
Poeta por inclinação e vocação, seus poemas, apesar da complexidade que decorre do substrato metafísico, espelham o traço de sinceridade que lhe marca a obra, obra que, segundo disse ele, veio sendo divulgada em silêncio, na província, desde a adolescência.
É jornalista e escritor * (gilfrancisco.santos@gmail.com)