Por Marcos Cardoso*
Quem foi universitário nos anos 80 teve esse livro como leitura obrigatória. “As Veias Abertas da América Latina – Cinco Séculos de Pilhagem de um Continente”, título emblemático do escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano, mexeu com o imaginário revolucionário de uma juventude ansiosa por liberdade, sufocada inclusive pela vontade reprimida de criticar os nossos “terríveis algozes”.
Com 50 anos de publicação da primeira edição comemorados no ano passado, o livro de 1971 é considerado um texto clássico não só para os simpatizantes marxistas, mas recomendado a todos seguidores, ou não, do pensamento anticapitalista e antiamericanista na América Latina.
Galeano analisa a história do continente latino desde o período da colonização até aquela quadra do Século 20, argumentando sobre as causas e consequências da exploração econômica e a dominação política do continente, acompanhada de constante derramamento de sangue índio, primeiramente pelos europeus e seus descendentes e, mais tarde, pelos Estados Unidos.
Na sua tese de mais de 300 páginas, Galeano argumenta sobre como as riquezas que primeiro atraíram os colonizadores europeus, como o ouro e o açúcar, haviam dado origem a um sistema de exploração e que este conduzira inevitavelmente à “estrutura contemporânea de pilhagem”, que seria responsável pela pobreza e subdesenvolvimento crônicos da América Latina.
O livro foi banido no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai durante as ditaduras militares destes países. Após a euforia do pós-ditadura, passou um período hibernando, até que, em 2009, durante a 5ª Cúpula das Américas, o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez o deu de presente a Barack Obama, presidente dos Estados Unidos. Na época, o gesto fez o livro sair da posição 54.295 da lista dos mais populares do site Amazon.com, para alçá-lo à segunda posição em apenas um dia.
Questionado sobre esse episódio, o escritor respondeu que nem Obama e nem Chávez entenderiam o livro. “Ele (Chávez) entregou a Obama com a melhor intenção do mundo, mas deu de presente a Obama um livro em uma língua que ele não conhece. Então, foi um gesto generoso, mas um pouco cruel”, pilheriou.
Em 2014, o livro voltou ao debate, dessa vez até mais acalorado, porque o próprio Eduardo Galeano, passados mais de 40 anos, simplesmente o renegou. “Eu não seria capaz de ler o livro de novo. Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é pesadíssima. Meu físico [atual] não aguentaria. Eu cairia desmaiado”, ironizou, na 2ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, em Brasília.
Galeano explicou que “As Veias Abertas da América Latina” foi o resultado da tentativa de um jovem de escrever um livro sobre economia política sem conhecer devidamente o tema. “Eu não tinha a formação necessária. Não estou arrependido de tê-lo escrito, mas foi uma etapa que, para mim, está superada”. O livro foi publicado pela primeira vez quando o autor tinha 31 anos.
Para ele, embora algumas das questões abordadas no livro continuem “se desenvolvendo e se repetindo”, a realidade mundial mudou muito desde que a obra chegou às livrarias. E confessou que não teria interesse em reescrevê-lo ou atualizá-lo.
“A realidade mudou muito. Eu mudei muito. Meus espaços de penetração na realidade cresceram tanto fora, quanto dentro de mim. Dentro de mim, eles cresceram na medida em que eu ia escrevendo novos livros, me redescobrindo, vendo que a realidade não é só aquela em que eu acreditava”, ressaltou.
“A realidade é muito mais complexa justamente porque a condição humana é diversa. Alguns setores políticos próximos a mim achavam que tal diversidade era uma heresia. Ainda hoje há sobreviventes dessa espécie que acham que toda a diversidade é uma ameaça. Por sorte, não é. Ou seria justa a exigência do sistema dominante de poder que, em escala mundial, nos obriga a uma eleição muito restrita, ridiculamente mesquinha, e nos convida a elegermos como preferimos morrer: de fome ou de aborrecimento”, detalhou Galeano.
Naquele que foi o último evento que participou no Brasil, o escritor disse que, em todo o mundo, experiências de partidos políticos de esquerda no poder “às vezes deram certo, às vezes não, mas muitas vezes foram demolidas como castigo por estarem certas, o que deu margem a golpes de Estado, ditaduras militares e períodos prolongados de terror, com sacrifícios humanos e crimes horrorosos cometidos em nome da paz social e do progresso”. E, observou: em alguns períodos “é a esquerda que comete erros gravíssimos”.
No Brasil, o livro foi publicado pela editora Paz e Terra e, depois, pela L&PM, com nova tradução de Sergio Faraco, um importante contista do Brasil. Sobre essa versão, escreveu Galeano: “Excelente trabalho de Sergio Faraco, melhora a não menos excelente tradução anterior, de Galeno de Freitas. E graças ao talento e à boa vontade destes dois amigos, meu texto original, escrito há quarenta anos, soa melhor em português do que em espanhol”.
No prefácio escrito em agosto de 2010, especialmente para aquela edição de “As Veias Abertas da América Latina”, Eduardo Galeano lamenta “que o livro não tenha perdido a atualidade”. O clássico teve uma edição atualizada em 1977, quando a maioria dos países do continente padecia com sanguinárias ditaduras. Mas vendeu milhões de exemplares em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos, “onde se tornou parte do currículo em muitas universidades, a partir dos anos 70, em cursos que variam da história e antropologia à economia e geografia”, segundo observou o jornalista Larry Rohter, do New York Times.
Galeano morreu há sete anos
Eduardo Galeano nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 3 de setembro de 1940. Em sua cidade natal, foi chefe de redação do semanário Marcha e diretor do jornal Época. Fundou e dirigiu a revista Crisis, em Buenos Aires. A partir de 1973, esteve exilado na Argentina e na Espanha; no início de 1985, voltou ao Uruguai, residindo desde então em Montevidéu.
É autor de vários livros, traduzidos em mais de vinte países, e de uma vasta obra jornalística. Recebeu o prêmio Casa de Las Américas em 1975 e 1978, e o prêmio Aloa, promovido pelas casas editoras dinamarquesas, em 1993. A trilogia Memória do fogo foi premiada pelo Ministério da Cultura do Uruguai e recebeu o American Book Award (Washington University, EUA) em 1989.
Em 1999, Galeano foi o primeiro autor homenageado com o prêmio à Liberdade Cultural, da Lannan Foundation (Novo México). É autor de “De pernas pro ar”, “Dias e noites de amor e de guerra”, “Futebol ao sol e à sombra”, “O livro dos abraços”, “Memória do fogo” (que engloba “Os nascimentos”, “As caras e as máscaras” e “O século do vento”) e “Os filhos dos dias”, dentre outros.
Eduardo Germán María Hughes Galeano morreu há sete anos, na manhã da segunda-feira 13 de abril de 2015, em um hospital da capital uruguaia. O escritor, que tinha 74 anos, fumou durante grande parte da vida e tinha câncer de pulmão.
* É jornalista e escritor. Foi diretor de Redação do Jornal da Cidade, secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, diretor de Comunicação do Tribunal de Contas de Sergipe e é servidor de carreira da UFS. É autor dos livros “Sempre aos Domingos – Antologia de textos jornalísticos” e do romance “O Anofelino Solerte”.