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A loura era o Benedito

Por Amaral Cavalcante *

Olha como eu fico arrepiado! Vinha com meu chevetinho grafite, o rádio ligado em Ruas de Ará, quando, bem ali na ponte do Conjunto Orlando Dantas, lembrai-me dela: a Loura defunta do Augusto Franco!

Que fim levou?

Ela era bela e peituda, vestia um longo branco em tafetá e sedosos bicos, aqui acolá manchado pelo barro visguento do Cemitério dos Cambuís. Dos precipícios decotes subia do entre-peitos um olor de virgindade aflita, a quentura tardia dos prazeres soterrados a esfumaçar-se em fios, como o derradeiro estertor de uma fogueira extinta. Lá vinha ela, os pezinhos levitando no asfalto, mãos diáfanas onde singravam veias azuis desbotadas, segurando um buquê já meio murcho e com um lenço branco imaculado e fino. Meia-noite e tanto a Loura pedia carona no mais escuro trecho da avenida.

Um conhecido do marido da prima do zelador da repartição parou. Pra que parou? Dizem que a mulher virou caveira arreganhando os dentes em gargalhada escabrosa e um perfume de cravo de defunto impregnou o ar, a roupa, o carro e a vida do coitado.

Ao chegar em casa, uma cera branca lhe encascando a cara, ele teve dificuldade para explicar aquele estranho perfume à sua senhora. Bambo das pernas e gaguejando muito, balbuciou:

– A Loura, foi a Loura, tô pra morrer de susto!

Sua senhora, tão balofa quanto burrinha, ainda achou no banco do carona um longo fio de cabelo dourado, mas nem desconfiou de nada. Era da defunta! E ela mesma se encarregou de difundir a história, condenando o seu fiel marido a repeti-la ene vezes pro sogro, pros vizinhos, como também “para o mundo” no acreditado programa radiofônico de Laurindo Campos, o mais espetacular cronista social da época.

Daqui a pouco virou a assombração oficial da cidade. Dela se contavam as aparições mais inusitadas. Com Valdomiro, o noivo de Suely (a Bunduda), filha de Onofre do Caldinho de Ostra, foi diferente: ele não parou, que não era noivo de transgredir depois da meia-noite, mas a loura macabra aparecera no banco de trás.

Primeiro o cheiro, depois um fungado choroso no cangote e um tapinha no pé do ouvido. Quando foi ver, olhando pelo retrovisor, olhe ela lá brilhando no escuro em espectral brancura, com dois aterrorizantes chumaços de algodão enfiado nas ventas. Quase bate num poste. Não fosse o poder de um “crendeuspadre” balbuciado aos atropelos, tinha Valdomiro partido pros quinto dos infernos com loura e tudo. Foi o que contara à chorosa Suely – que dormira de janela aberta e bundão esperançoso aguardando grandes chamegos, o tal do Valdomiro, coitado, com a virilidade terrivelmente prejudicada, já sem forças para trepar, sequer, no parapeito.

Então, a Loura passou de escabroso fantasma a descarado álibi, sua aparição teatral cada vez mais gótica e aterrorizante a servir de justificativa malandra para traições maritais e outras escapadelas.

Foi então que chegou Fernando Sávio na redação da Folha da Praia com a reportagem pronta. Jornalismo puro, matéria de primeira linha destinada a ocupar capa e página dupla central. Mas cadê a foto? Ilustrar com que? Tem nada não, lá estava Benedito Letrado, artista de muitas performances, capaz de tudo por uma capa. Seria ele a Loura do Augusto Franco e ninguém faria melhor! E foi de peruca e algodão nas ventas, fotografado por Cezar Oliveira num belo trabalho, ainda hoje guardado nos arquivos do jornal para provar que eu não minto.

Depois disso a Loura se esvaiu e o Benedito ficou sendo a dita cuja.

* Amaral Cavalcante é jornalista, poeta e cronista de mão cheia

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