Por Antonio Samarone *
“As predisposições biológicas do sofrimento serão dissolvidas. Dores corporais e físicas estão destinadas a desaparecer. As dores da alma perderão o sentido, surgirá uma felicidade sublime. O tédio será eliminado numa sociedade paliativa, pós humana.” Escreveu David Pearce, em seu Imperativo Hedonista.
Esquecem os pós-modernos, que a dor não é apenas uma manifestação do corpo, ela é parte da condição humana. Deixar a dor apenas por conta da medicina é uma simplificação perigosa.
Lembrando Nietzsche: “Contra o tédio, até os deuses lutam em vão.”
A nossa relação com a dor diz em que sociedade vivemos. Hoje predomina o medo generalizado da dor, a algofobia! Toda situação dolorosa é evitada, a dor e o sofrimento perderam o sentido.
A epidemia dos opioides é um sinal. A ideologia do bem-estar leva a que pessoas saudáveis recorram a esses medicamentos. Em breve, viver sem dor passa a ser um direito constitucional.
A dor é vista como um sinal de fraqueza que deve ser eliminada ou ocultada. A sociedade paliativa coincide com a sociedade do desempenho.
Nas sociedades do martírio (idade média) a dor era exaltada. Nas sociedades da disciplina (idade moderna) a dor era um ingrediente importante de dominação. Nas sociedades pôs moderna a dor deve ser abolida. O corpo hedonista se generaliza, destinado apenas ao desfrute.
A vida é amortecida numa sobrevivência confortável.A vida é amortecida numa sobrevivência confortável.
A forma como uma pessoa reage a dor diz muito sobre ela. A algofobia se prolonga no social. As lutas políticas que envolvem dificuldades e confrontações dolorosas são abandonadas. Busca-se os consensos, uma política paliativa. O Centro difuso acomoda a todos.
Apenas verdades doem. Tudo que é verdadeiro é doloroso. A sociedade paliativa é uma sociedade sem verdades, um inferno do igual. Vivemos a Era da pós verdade, dos fakenews, da apatia a realidade.
Marchamos para uma democracia paliativa, uma pós democracia.
A dor é uma negatividade indesejada. A psicologia atual se ocupa da positividade, do bem-estar e da felicidade, por isso abandonou Freud.
A resiliência, forma espiritual da resistência, é desejada pela sociedade do desempenho. A cultura da curtição esqueceu-se que a dor purifica, permite a catarse. A dor foi condenada a calar-se. O sofrimento deixou de ser caminho da redenção.
É a dor que distingue o pensamento do cálculo da inteligência artificial. Não haverá nenhum algoritmo da dor. Apenas a vida é capaz de sentir dor, consegue pensar. Os algoritmos da inteligência artificial tornam o comportamento humano transparente, ou seja, calculável e controlável.
A ordem digital é anestésica, leva aos esquecimento do ser. A sociedade paliativa recusa qualquer conduta heroica. É tempo do hedonismo, do bem-estar onírico, sem dor e contradições, tempo da fruição do consumo. É o fim do último ser humano, previsto por Nietzsche
A sociedade paliativa elimina a empatia, o outro desaparece. Os seres humanos morrem solitários em UTIs, sem qualquer atenção humana. O distanciamento social da pandemia acentuou essa perda de empatia.
É o fim da compaixão, do afeto de solidariedade. Somos movidos pelo afeto da indiferença. A bolha digital nos blinda contra o outro.
A medicina de mercado não conseguiu ainda transformar os cuidados paliativos em mercadoria, em procedimentos padronizados e contabilizados. Aí reside os limites à sua expansão: como transformar empatia e acolhimento em procedimentos lucrativos?
O que há em mim é sobretudo o cansaço da alma, parodiando Fernando Pessoa.
As ideias aqui expostas são releituras de Byung-Chul Han.
* É médico sanitarista