Por Eduardo Marcelo Silva Rocha *
A “passagem” da Segunda Guerra Mundial em Sergipe, que na manhã de hoje (16), completou exatamente os 80 anos dos torpedeamentos dos 3 navios já tão contados: Baependy, Aníbal Benévolo e Araraquara, deixou diversas marcas em nosso Estado/Sociedade. Muito já se falou sobre os pilotos do Aeroclube e de outros que ajudaram no resgate dos sobreviventes, notadamente na costa aracajuana. Falou-se também dos “malafogados” – objetos dos integrantes dos barcos – que vieram dar em nossa costa e que fez a alegria de muitos a riqueza de alguns e que foi “pago” por Nélson de Rubina, o único condenado por se apossar ilegalmente de objeto. Se o o foi pela importância da vítima ou não, parece que serviu com a redenção frente aos demais que não também se apossaram dos “malafogamentos”, sem responsabilização.
Mas, outros que tiveram participação nos eventos daquele distante 1942 pouco são lembrados, falo das populações das desembocaduras dos rios Real e Vaza Barris, pequenas colônias extrativistas, que acolheram os náufragos e os “malafogamentos”. Sem querer individualizar, por hora, trago um relato da memória de uma dessas comunidades, sobre o impacto de um “malafogado” que deu-se na antiga Praia da Boa Viagem, hoje conhecida como Praia do Saco, que em um misto de respeito, crendice e devoção religiosa criou uma questão que levou meses para se resolver, revelando ou reafirmando detalhes sobre a própria cultura nordestina, ao menos.
Trataremos de um cruzeiro, não o que se relaciona com a fidúcia ou moeda, mas o símbolo religioso., que deu naquela comunidade no contexto dos torpedeamentos. Apenas como referência fiel, importa lembrar que além dos torpedeamentos já citados, houve ao menos um outro caso de afundamento naquela região, o da embarcação Bagé, em 1943. Agora sigamos.
Segundo a comunidade ribeirinha [1], esse cruzeiro após ser recolhido, foi tratado com toda a deferência que era possível à época, tendo surgido a questão de o que fazer com aquele símbolo Cristão, uma vez que a única hipótese fora de cogitação era não reaproveitá-lo como símbolo religioso, finalidade para a qual fora confeccionada. Logo após consórcio entre os moradores mais velhos, decidiu-se que a cruz de aproximadamente 2 metros de altura fosse fincada em frente a Capela da comunidade.
Assim fez-se e o inverno seguinte converteu-se em uma grande seca, inexplicável, mas que logo foi associada à colocação do tal cruzeiro. Diante desse novo problema, deliberou-se pelo translado do artefato ao cemitério da comunidade, algumas centenas de metros do local original. Tendo sida aceita a proposta, o cruzeiro foi levado ao seu novo local.
Apesar da aparente solução – como se fala popularmente – a “alegria de pobre” pouco durou – pois, não tardou para que surgisse um novo fenômeno que também não tardaria a ser associado à cruz “malafogada”: marés muito altas, que avançaram algumas centenas de metros, alcançado o arruado como nunca houvera, chegando às margens da Capela.
Uma vez que a nova colocação do cruzeiro falhara enquanto solução, a comunidade percebeu que era necessário, mais uma vez, mudá-la, pois se a seca não agradara, aquela maré alta também não merecia estima.
Pois bem, após novas deliberações, o cruzeiro foi recolhido e posto dentro da Capela, em seu vão central. Desde então, após essa medida, não mais houve nenhuma associação, por parte da comunidade, do cruzeiro às secas ou surgimento de marés extremamente altas.
O interessante dos fatos relacionados ao cruzeiro é que considerando as datas e a incidência de secas no país, há uma correlação possível, pois em 1942 houve sim uma grande e notável seca. Segundo Neves (2001), já em 1941 as chuvas escassearam no inverno e pioraram ainda mais em 1942. A situação em 1942 foi tão grave que mesmo a efetivação de frentes de trabalho do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca não foi capaz de conter a miséria decorrente e evitar saques em municípios que foram judiados pela seca, ao ponto de se criarem Campos de Concentração no Ceará, para conterem os flagelados.
Por óbvio que não se pretende cravar que a seca ou a cheia foram obras da colocação do cruzeiro, tão pouco questionar o que aqueles ribeirinhos relataram e creram, apenas interessou aqui relatar o fato, que apesar de curioso e revelador dos costumes daqueles, também trata-se de algo fruto das operações do Eixo na Segunda Guerra, que impactaram na vida daquela comunidade e pouco é conhecido.
Forte abraço aos Sacanas (a comunidade da Praia do Saco).
[1] Conforme relatos das senhoras Rosilda Silva Feitosa e Josefa Conceição Lima Silva.
* É tenente-coronel da Polícia Militar de Sergipe.