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O fetiche da inteligência

Por Eduardo Marcelo Silva Rocha *

O estardalhaço criado pelo dublê de instrutor policial e senador bolsonarista Marcos do Val conseguiu colocar o ex presidente no centro das discussões sobre os responsáveis pelos atos golpistas/terroristas do dia 08 de Janeiro corrente. Além disso, de forma subsidiária e inoportuna, trouxe pela enésima vez mais um debate raso sobre a Atividade de Inteligência. Esse tipo de exposição não ajuda em nada o desenvolvimento de importante segmento do serviço público, que convive com o ranço de em passado recente ter sido usada não em favor do povo, mas contra.

Esse tipo de exposição, que se baseia em um falso secretismo, deturpa as prescrições da Lei de Acesso à Informação, esta sim responsável por estabelecer os critérios de interesse do Estado em limitar, em situações e contextos especificamente delineados, a publicidade de temas sensíveis aos interesses de segurança da federação brasileira e que não prevê em seu escopo nenhuma das alegações do senador.

Pois bem, o senador Do Val (que nos anos 2000 dizia ser instrutor da NASA, do US Army e chamado para a preparação na guerra ao terror, pós 11 de setembro), em algumas das suas diversas e contraditórias falas, disse que “era da Inteligência” e que não poderia oficializar assuntos em termo de declarações por também o ser (da Inteligência).

Sem muita tecnicidade enfadonha sobre a legislação pátria referente, parece ser suficiente saber que na forma da Lei as atividades de Inteligência são legalmente estabelecidas em sede de órgãos do Poder Executivo e não do Poder Legislativo, donde se encontra o Senado. Portanto, o ilustre senador enquanto tal, não compõe nenhum dos órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência, logo, não pode se denominar como “da Inteligência”, ao menos não daquela oficialmente estabelecidas no país.

E mesmo que o fosse, a “operação” na qual se envolveu conforme as próprias alegações, era basicamente uma grave questão criminosa, contra a segurança nacional, a ser tratada junto ao órgão competente para a apuração, no caso a Polícia Federal ou o Ministério Público Federal, por dever de ofício.

Ora, a alegação de que como providência foi “denunciar” ao Ministro que seria vítima – se realmente for verdade – demonstra o total desconhecimento do conteúdo e funcionamento do sistema das leis que ele próprio vota, afinal, um senador é um legislador basicamente. Assim sendo, o senador que diuturnamente se sente um “membro da inteligência” também parece não ter muita noção dos seus deveres precípuos como parlamentar e como servidor público na essência.

Voltando à discussão que interessa, o mesmo parlamentar desconhece princípios básicos acerca do funcionamento da atividade da qual deixa a entender ser integrante. A atividade de inteligência basicamente é uma função de assessoria, considerando os preceitos da Administração. Como qualquer atividade funcional, ela possui técnicas e processos, sendo estes voltados ao fornecimento de conhecimentos ao tomador de decisão, para subsidiá-lo neste processo. Não existe “leva e trás”, mas trâmite oficial de documentos.

Logo, retirando o contexto processual penal já colocado e considerando que ele fosse integrante da “inteligência”, a sua opção em não documentar o fato já coloca a própria a ação fora do escopo da Lei de Acesso a informação, que é exatamente a norma que poderia – forçando a barra – justificar a desculpa que deu de “não poder falar por ser da inteligência”. Independente do exposto, esse ponto é o mais contraditório e o de maior desserviço à atividade nessa exposição por ele promovida. Pois causa ainda mais confusão na percepção geral do que faz a Inteligência, diante da reiterada afirmação de um solene “secretismo”, transparecendo que em Inteligência qualquer coisa pode ser escondida, como se não houvesse fiscalização e controle de tais ações.

E nesse ponto a coisa piora, pois ilustre imobilizador tático integrou em algum momento a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência, órgão do Senado responsável pela fiscalização das Atividades aqui em objeto. Compor tal comissão não faz de ninguém ser “alguém da Inteligência”, mas sim alguém da Comissão do legislativo responsável por fiscalizar atividades do Executivo. Fiscalizar a atividade não se confunde com integrá-la.

Apesar de vender na imprensa que ao se encontrar com o ministro para expor uma conversa anterior sem nenhum processamento de inteligência prévio e/ou registrar oficialmente em termo os fatos, o senador passou ao largo de ter produzido qualquer produto de inteligência. Por melhor que possa ter sido sua intenção, o fato mais se alinha ao que chamamos de fofoca do que com uma ação de inteligência.

É fato que nos últimos anos a atividade de inteligência foi cantada em verso e prosa em generosos espaços na imprensa, algo que mais atrapalha do que ajuda, principalmente porque permite que seja retratada de qualquer jeito, independente da própria realidade.

Essa divulgação obsessiva do senador ao criar/revelar um escândalo usando a atividade de inteligência como escudo para defender suas ações dúbias, só no parece ser capaz de criar mais desgaste a um setor governamental que não precisa de muita divulgação, principalmente negativas. O envolvimento feito pelo senador da atividade às questões criminais que revelou ter participado de alguma forma, seja por ação ou omissão, se revestem de um desserviço à Inteligência do país.

Não sei se há uma relação direta com o fato, mas finalizo observando um fenômeno que se reforça: a militarização das pessoas. Explico, consiste na tendência de diversos segmentos quererem ostentar de alguma forma, desesperada ou não, a condição de policial ou de militar. Certamente porque policiais encerram poderes específicos de restrição de direitos, além do porte de armas. Já o militar, com a mesma similaridade, tem como adicional a farda, que fetichiza a representação dessa força. Tudo isso, ainda, é potencializado por um elemento mais recente: a campanha que heroiciza a atividade de inteligência como a solução fundamental e perfeita para os problemas de segurança pública e corrupção.

Seja o que for, o fato que reitero é o desserviço prestado por essa publicidade enviesada. Aqueles que atuam na atividade, que se preocupam em prestar bons serviços, conforme a técnica e as prescrições legais, certamente “agradecem” essa “boa vontade”, mas a dispensam pelo bom andamento do serviço.

* É tenente-coronel da Polícia Militar de Sergipe.

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