Por Eduardo Marcelo Silva Rocha *
Foi um homem do seu tempo. Com defeitos comuns, nada de muito especial. O que diferenciava era sua coragem e honestidade, fruto de um caráter forte. Duro, mas ao mesmo tempo doce com os do coração. Essas duas, a coragem e honestidade marcariam sua vida e, mesmo depois dela, seria a memória que o homem deixaria como marca da sua passagem nesse planeta.
Desde cedo rompera com Deus, sua fé fora posta à prova quando seu pai caiu doente e, mesmo tendo feito promessas a todos Santos, não foi ouvido por nenhum, seu pai morreu. Essa seria uma outra marca, capaz de nos proporcionar histórias de um seu anedotário que talvez eu ainda conte: “- Vá com Deus! – Se ele conseguir pular no para-choque e se segurar, ele vai, mas aqui dentro do carro ele não entra”. Fora traído pela fé, não era de abrir concessões.
Apesar de que no fim da vida iria se reconciliar com o Criador, diante da fragilidade que a doença nos revela, ou passa na cara.
Mas era um homem do seu tempo e, quando criança, sem pai e com irmãos, como um dos mais velhos, teve que aprender a se virar logo. Seguiu sua jornada e adotaria um outro pai, este, no local de trabalho. Outro homem destemido. Tinha que ser mesmo! O único que talvez foi capaz de lhe dar uma ordem acatada com respeito incondicional. Era uma relação, inicialmente profissional, mas que se tornaria uma amizade paternal.
Lembrava ele que certa feita, naqueles difíceis anos 70, voltavam de uma viagem, os dois, autoridades, e em determinado momento decidiram parar na estrada, em um cabaré. Adentraram ao recinto e logo perceberam que em um dos quartos daquele lugar, um provável muquifo, um cliente agredia uma das trabalhadoras do local. Antes do chefe, pai, amigo lhe ordenar buscar o cabra covarde que batia na indefesa mulher, recolhem a cigarreira do bolso da camisa do agressor, que estava do lado de fora do quarto.
Quando retorna conduzindo o escroque (é o novo!), este vem reclamando que roubaram a cigarreira e que queria encontrar o ladrão. Nesse momento, o chefe lhe dirige a palavra, segurando a cigarreia:
– É esta daqui?
Incontinenti, sem nenhum titubeio diz:
– É igualzinha, mas não é essa!
Lembrava que após essa negativa, o galante foi convidado a sentar-se na mesa, o que fizera sem muitas opções, é verdade. E ainda ouviria que não se deveria bater em uma puta, pois o homem que bate em puta é mais puta que uma puta.
Feitos os esclarecimentos, o homem ainda seria convidado a beber com eles, pois as coisas já se haviam esclarecidas, oportunidade em que lhe foi servido três copos transbordando de cachaça, para que ele brindasse junto aos novos amigos – a contragosto – que ainda lhe dariam uma carona até um ponto qualquer dentro da rota deles, independente de para onde o outro iria, se é que saberia mais o que estava fazendo, após a generosidade etílica a fórceps. Ficou no meio do nada, certamente sem lenço e sem documento, esse era o castigo.
Mas, aquele homem era sua referência, era o exemplo a ser seguido: “era um homem”.
Mas, ele refletia, lembrava que quando aquele seu pai postiço alçava voos altos no topo da carreira, fora traído por seu destemor. Cometeu um erro, descuidou da própria segurança. Certamente a valentia de homem sertanejo, de terras semiáridas, nas quais se forjaram homens de extremo valor na brigada, como Lampião e Mané Neto, lhe permitia ser imprudente e, não medindo adequadamente os riscos, colocou-se em uma situação que terminou sendo morto de forma inesperada.
A lenda não foi capaz de salvar o homem.
Ele lembrava daquele dia. Estava na bodega do seu primo, jogando sinuca e tomando montila com coca. Estava exatamente com o copo na mão quando recebera a notícia. Fora dominado por um desespero, outra perda, aquele que a vida lhe dera como consolação. (Dizem que D. Maria – a esposa do chefe – até hoje diz que ele, para ela, sempre foi um filho, antes de começar a chorar e lembrar dele, do marido e do outro filho). Como era possível perder de novo? Agora um homem mais destemido que ele. Como?
O desespero dele então se transformou em cólera. E lembrava, exatamente, o que tinha acontecido. Na falta de poder fazer algo, esmagara o copo de pinga que segurava com a mão, de tanto ódio. Nem ligara para o profundo corte que fizeram os cacos de vidro em sua mão. Tinha dúvidas se havia superado aquilo.
Seguira a vida de homem respeitado e honrado, a pobreza condizente com o salário era e é a maior prova de seu caráter. Sabia que se quisesse, teria sido rico. Quantos insuspeitos não o foram? Mas nunca quis, porque honestamente era impossível isto, as opções que se colocavam eram todas pela desonestidade ou desonra. Não foi isso que aprendeu com seu pai que lhe dera a vida, nem com sua mãe.
Como cantou Jackson do Pandeiro, trabalhara muito e conseguira pouco o que queria, mas também não podia ser puxador de saco, esses que comem de colher. Errara muito, mas não errara para agradar e receber favores de volta. Seu discurso nunca seria hipócrita.
Ao final da carreira, sabia que sua fama – que nunca procurara – estava estabelecida. Mas olhava para trás e via como fora perseguido. Lembrava do dia em que quase prendeu o filho do secretário que queria na força da autoridade do pai, romper uma barreira policial que ele comandava. Foi convidado pelo distinto para prestar esclarecimentos em terreno adverso: na casa onde o outro se hospedava. Ouviu o que não queria, mas também disse o que quis. Olha pra hoje e diz: se fosse hoje, seria queimado em praça pública também o assédio moral que sofrera não seria suficiente.
Daquele dia em diante, passaria por alguns meses difíceis. Sendo transferido semanalmente de lotação. Não suportaria e sairia exonerado a pedido, apesar de outro homem distinto insistir em sua permanência. Mas era homem de uma palavra só, não voltava atrás. Seria mais uma vez indelicado: Comandante, quero sair, não vim lhe pedir conselhos, mas exoneração!”. Iria seguir outros rumos. Dirigir caminhão ou ser taxista.
Anos de desperdício, que seriam cobrados no futuro.
Conseguiria reassumir suas funções de volta, alguns anos depois. Mais adiante, já aposentado, o secretário de plantão iria convidá-lo para assumir novamente a função que o consagrou como homem destemido, uma vez que precisavam dele.
Doce ironia, a autoridade (não a pessoa) que o havia feito pedir demissão do serviço público duas décadas atrás por assédio moral, agora iria pessoalmente lhe visitar em sua casa, pedir que – aposentado – aceitasse um novo emprego. Pensou ele “nada como um dia após o outro”.
E ainda não iria aceitar o convite, apesar de toda a deferência, afinal, como deixou claro ao honrado secretário, no auge do machismo que lhe marcara a vida, que não poderia nunca trabalhar tendo um chefe que era mandado por uma mulher.
Eram tantas lembranças que lhe aturdiam as ideias. Coisas que poderia ter feito e não fizera, outras que se esforçara. Mas assim era a vida. Não adiantava chorar o leite derramado. A vida seguia, na verdade não mais estava nesse mundo. Havia passado, a doença lhe derrubara. O tratamento, seu corpo fragilizado não aguentara os potentes remédios. Agora só observava o que podia e lembrava do que vivera.
Mas tinha uma certeza.
A mesma doença que de um jeito ou de outro selou o seu destino, que tanto dele exigiu mudar. Que tantos incômodos lhe causara, ao mesmo tempo foi capaz de fazer com que ele mudasse algo impensável.
Agora, também, faltava apenas se reencontrar com sua mãezinha e com seu primeiro pai, que sempre estiveram velando por ele, principalmente ela, desde que partira pouco tempo após o pai postiço!
E refletia novamente: eu mudei, eu me reconciliei com Deus!
* É tenente coronel da PM/SE e membro da Academia Brasileira de Letras e Artes do cangaço (eduardomarcelosilvarocha@yahoo.com.br)