Um levantamento realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe (UFS) identificou que a menor unidade federativa do país comercializa e consome a cada ano, cerca de 310 toneladas de caranguejo. Este registro histórico tem sido atualizado a cada marco temporal de cinco anos, mesmo diante dos três ciclos de defeso impostos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), como medida de preservação das espécies e à fruição sustentável dos recursos naturais. Responsável pela geração de emprego superior à casa de 4.500 pessoas em Sergipe, a primeira comercialização atinge com facilidade uma receita de dois milhões e 500 mil por ano.
Pesquisadores da instituição de ensino superior, bem como peritos da Secretaria de Estado da Fazenda (Sefaz), entendem que a etapa derradeira deste fluxo econômico é incalculável devido a vasta variedade dos valores repassados para os clientes nas centenas de estabelecimentos em que a iguaria é protagonista nos cardápios. Por mais que o crustáceo impere na gastronomia local, com direito a uma passarela na zona Sul de Aracaju, monumento medindo 7 metros de largura e 2,30 de altura, além de uma lei estadual intitulando-o como Patrimônio Cultural e Imaterial dos 75 municípios, o seu trabalho de captura exige determinação, sabedoria e paciência. Para entender este ato empreendedor, nossa equipe foi até a região do Mosqueiro, zona de expansão da capital.
Área de manguezal incumbida por reunir 37 catadores credenciados – dos quais 71% sobrevivem com exclusividade desta captura artesanal [os demais 29% estendem a respectiva atuação trabalhista para a pesca] –, nos deparamos com José Lúcio dos Santos, de 58 anos. Tendo a prática herdada do pai, ele reconhece que seu esforço diário permite que Aracaju mantenha o título fictício de ‘capital brasileira do caranguejo’. Diante das boas condições meteorológicas, entre os dias 01 e 03 deste mês de março, acompanhamos de perto o trabalho de escolha das tocas e busca pelo alimento. Durante esta experiência, flagramos sucessivos atos de consciência dedicada à preservação do meio ambiente e a consecutiva manutenção destes postos de trabalho.
“O caranguejo é frágil; qualquer dois dias trancados em um espaço sem ser o certo, eles acabam morrendo. Então todo caranguejo que a gente pega aqui para vender, olhamos o peso e tamanho, se tiver fora do padrão básico, a gente prefere devolver para a toca e esperar mais algumas semanas para ele crescer mais. Essa é a nossa fonte de renda […] aprendi já de cedo com meu pai e tios que precisamos pensar na preservação desse espaço”, explicou. Educado com base no conhecimento popular, mesmo sem dispor de conhecimento técnico, José Lúcio está empreendendo. O ato de identificar oportunidades de negócio e pôr em práticas ideias está inserido na sustentação do valor econômico, social e ambiental.
Questionado sobre planejamentos que porventura desenvolva nas vésperas do defeso, ele revelou que o fluxo do trabalho precisa ser gradativamente ampliado. “Respeitamos a andada porque entendemos que é uma forma de manter nossa sustentação. Antes desse período o que fazemos é aumentar nosso turno de trabalho para que não nos falte condições de sobrevivência. Se a gente não fizer isso, além das multas, estaremos acabando aos poucos com o futuro da existência do caranguejo[-uçá]”, completou. O fenômeno denominado como: “andada”, é o período de reprodução em que os caranguejos saem de suas tocas e andam pelo manguezal para acasalamento e liberação dos ovos.
O Ministério do Meio Ambiente indica que neste período a espécie se torna mais vulnerável, visto que a captura é facilitada quando saem de forma coletiva das tocas em busca de parceiros. Nesses dias, além da captura, a legislação brasileira proíbe a manutenção em cativeiro, o beneficiamento, transporte, industrialização, comercialização e armazenamento, bem como as partes isoladas, sejam elas: desfiado, puãs, pinças e/ou garras. O ato de apreciar o sabor deste alimento exige habilidade. Paralelo à captura artesanal, bem como de todo o cenário cultural e trabalhista que envolve o crustáceo em Sergipe, desde o início da década passada bares e restaurantes oferecem gratuitamente professores que ensinam turistas a quebrar o caranguejo sem desperdício.
Proprietário de um estabelecimento multipremiado, com destaque inclusive no Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba X-9 Paulistana – durante o carnaval de São Paulo deste ano –, o empresário José Hamilton Santana comentou que os pratos tendo o caranguejo como alimento central, permanecem ocupando o ranking dos mais pedidos. “No Rio de Janeiro temos a feijoada, em Minas Gerais temos o queijo, no Rio Grande do Sul o churrasco, no Pará o tacacá, nossos vizinhos baianos o acarajé. Aracaju precisava de um produto que marcasse nossa gastronomia. A busca é tão intensa que não consigo apresentar nenhum outro alimento que possa se demonstrar tanta representatividade”, avaliou.
O empreendedor reforçou a aplicação de políticas públicas como medidas responsáveis por beneficiar toda a cadeia produtiva em torno do caranguejo. “Além das nossas receitas e campanhas internas no restaurante, a realização de festivais, leis, peças publicitárias e esse caranguejo gigante aqui na Orla de Atalaia, ajudam tanto o catador lá na ponta até nós revendedores. A contratação de professores gabaritados para ensinar turistas para quebrar a casca e saborear toda a sua carne partiu justamente do aumento de consumidores depois dessas intervenções que envolvem os setores público e privado”, acrescentou Hamilton Santana. No próximo dia 14 de julho a cidade comemora dez anos da instalação do caranguejo gigante.
Iguaria que, para além de si só – por mais que reine na sinfonia do movimento de quebra do casco –, contempla uma rica produção gastronômica. Pastel, fritada, casquinha, risoto, escondidinho de macaxeira, canapé, salgados diversos, entre tantas outras receitas. Paralelo ao protagonismo culinário, o caranguejo consegue movimentar a economia também nos seguimentos do artesanato, bebidas alcóolicas – o qual uma unidade do crustáceo é armazenada dentro da garrafa –, além da cultura musical. Durante 28 anos, o Bloco Ecológico Caranguejo Elétrico já reuniu mais de 85 mil associados e um público paralelo estimado em mais de 500 mil foliões. Criado com a finalidade de enaltecer a importância do caranguejo para o múltiplo empreendedorismo regional, a alegoria pré-carnavalesca busca conscientizar a população para a necessidade de proteger o meio ambiente.
Dentro deste cenário ambiental, a pesquisa científica desenvolvida pela UFS identificou que a crescente produtividade e consumo de caranguejo uçá no estado de Sergipe tem gerado um elevado volume de resíduos orgânicos (cascas) que acabam causando transtornos ambientais e sanitários. Diante desta constatação, uma forma de agregar valor a estes resíduos tem sido usar as cascas para a produção de biochar, que são promissores como bioadsorventes para remoção de metais-traço em soluções aquosas. Todo este movimento segue a cartilha presente no relatório desenvolvido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), intitulado: “Reimaginar os nossos futuros juntos: um novo contrato social para a Educação”.
Este Relatório, elaborado durante dois anos e fundamentado em um processo de consulta global – todavia envolveu cerca de um milhão de pessoas –, convida governos, instituições, organizações e cidadãos de todo o mundo a idealizar um novo contrato social para a educação que nos ajude a construir futuros pacíficos, justos e sustentáveis. Biólogo especializado em vida marinha e crustáceos, Gustavo Araújo destacou a consciência dos catadores de caranguejo como ação primordial na luta pela manutenção da espécie e da consecutiva tradição gastronômica. “Realizei um trabalho junto aos catadores em Sergipe, e constatei que mais de 90% do público respeita a natureza. O caranguejo é nosso patrimônio e temos por obrigação defendê-lo visando a sua integral recomposição natural”, frisou.
Mapeamento – Na atual conjuntura o registro oficial de catadores de caranguejo-uçá em Sergipe está dividido, em especial, da seguinte composição: rios Real/Piauí, município de Estância, 712 catadores; Indiaroba, 879; Santa Luzia do Itanhi, 800. Além disso, no estatuário do São Francisco, cidade de Brejo Grande, 948 catadores credenciados; Pacatuba, 260. Na região do rio Vaza Barris – que também contempla o Mosqueiro –, em Itaporanga D’Ajuda, são 413 credenciados; e, em São Cristóvão, 834. Zonas de preservação manguezal são encontradas também nas cidades de Aracaju, Nossa Senhora do Socorro e Barra dos Coqueiros.
Texto: Shis Vitória (Fotos: Joel Luiz)