Neste domingo (17) completa 40 anos que o metalúrgico Manoel Fiel Filho foi assassinado pelos militares golpistas nas dependência do DOI-Codi/2º Exército, em São Paulo. Até hoje ninguém foi punido pelo crime, mas a morte do operário foi a gota d’água para que o presidente Ernesto Geisel exonerasse do comando do 2º Exército o general Ednardo D’Ávila Mello e tirasse da chefia do Centro de Informações do Exército (CIE) o general Confúcio Danton de Paula Avelino.
Geisel soube da morte de Fiel pelo então governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins. Era um domingo, o presidente estava na residência do Riacho Fundo, em Brasília, preparava-se para dormir quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, Paulo Egydio narrou “o que tinha acontecido na carceragem do DOI-Codi. “Ele me contou que tinha havido um segundo enforcamento. Passei uma noite de cão. Não dormi, irritado, pensando como iria agir”, diz Geisel sobre o episódio em depoimento, em 1994, para a professora de ciência política Maria Celina D’Araujo e o antropólogo Celso Castro, e que está no livro Ernesto Geisel, editado pela Fundação Getulio Vargas.
A morte de Manoel Fiel Filho só foi tornada pública dias depois, por meio de nota divulgada pelo 2º Exército. “O Comando do 2º Exército lamenta informar que foi encontrado morto, às 13h do dia 17 do corrente [janeiro de 1976], sábado, em um dos xadrezes do DOI-Codi/2º Exército, o Sr. Manoel Fiel Filho. Para apurar o ocorrido, mandou instaurar Inquérito Policial-Militar (IPM), tendo sido nomeado o coronel de Infantaria Quema (Quadro do Estado-Maior da Ativa) Murilo Fernando Alexander, chefe do Estado-Maior da 2ª Divisão de Exército”.
IPM conclui por suicídio
O IPM foi concluído no prazo previsto de 30 dias. O procurador militar Darcy de Araújo Rebello, em 28 de abril de 1976, pediu o arquivamento do processo. “As provas apuradas são suficientes e robustas para nos convencer da hipótese do suicídio de Manoel Fiel Filho, que estava sendo submetido a investigações por crime contra a segurança nacional”, alegou o procurador. Foi a mesma conclusão a que chegou o encarregado do Inquérito Policial Militar, o coronel Murilo Fernando Alexander.
O citado crime contra a segurança nacional nada mais era do que uma acusação de receber exemplares do jornal Voz Operária, do PCB. Uma acusação feita com base em informação conseguida sob tortura de outro preso político. O IPM, apesar das evidências de tortura e de assassinato, concluiu que Manoel Fiel Filho cometeu suicídio.
“Finalmente, encerrado o inquérito com o relatório de fls. 144 a 150 concluiu pela inexistência de crime, ao que vale dizer, não houve homicídio, nem instigação, auxílio ou induzimento ao suicídio, o que é punido pelo Código Penal Comum e Código Penal Militar, Artigo 207”. Mais adiante, o documento diz “que não se pode chegar a nenhuma outra conclusão, senão aquela de suicídio, na sua expressão mais simples”. Os responsáveis pelo IPM, em nenhum momento, se interessaram em investigar uma série de evidências de que o metalúrgico foi torturado e assassinado.
Estrangulou-se com as meias
Na versão oficial, Manoel Fiel Filho se “autoestrangulou” usando as próprias meias. “Disseram para eu ir lá na delegacia. Falaram da história [de suicídio], mas ele nem tinha meia daquele tipo”, disse Thereza, esposa do metalúrgico, em entrevista à Agência Brasil. Apesar das dúvidas da esposa, o IPM foi encerrado, determinando o arquivamento. O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) ressalta que, contrariando a conclusão do inquérito, colegas de trabalho de Manoel disseram que o metalúrgico calçava chinelos quando foi detido. Além disso, outros presos políticos informaram que os carcereiros do DOI-Codi tiravam todos os pertences dos presos na chegada à detenção, especialmente cinto e meias.
O que se passou nas horas em que Fiel Filho esteve nas dependências do DOI-Codi foi reconstruído com o empenho da família e com a atuação da Arquidiocese de São Paulo, que tinha à frente dom Paulo Evaristo Arns.
Entre os presos que estiveram com o operário na carceragem do DOI-Codi, estava Geraldo Castro da Silva. Ele relatou, conforme consta no relatório da CNV, que ouviu os gritos de Manoel durante o interrogatório, pedindo: “Não me judia tanto, pelo amor de Deus que não vou aguentar”. Geraldo disse ainda que, durante algum tempo, tudo ficou quieto e, logo após, entrou uma pessoa que, referindo-se a Manoel, disse: “Chefe, o omelete está feito”.
“Não sabíamos de nada”
Hoje com 56 anos – tinha 16 quando o pai morreu – Márcia Fiel conta que, aos poucos, a família foi entendendo o significado da morte de Manoel. “Não sabíamos nada [da atuação política dele]. A única coisa que sabíamos é que ele ia muito ao sindicato”, disse. Ela lembra que, durante o velório e o enterro, agentes da repressão estiveram no local.
“Estavam descendo o corpo e eles em cima da tampa. Enquanto a pedra não cimentou, eles não saíram de cima. Não podia falar nada, abrir a boca”, lembrou. Ao deixar o Cemitério da Quarta Parada, em Água Rasa, na capital paulista, onde o corpo foi enterrado, Márcia, a irmã Aparecida, e a mãe Thereza foram para casas diferentes. “A gente tinha medo que eles voltassem para pegar a gente”, afirmou Márcia
Certa tranquilidade para a família só veio após verem publicada a notícia de que a morte de Fiel Filho tinha levado ao afastamento do comandante do 2º Exército. “A gente viu a reportagem na televisão. Eu falei: ‘não precisa mais a gente ficar se escondendo, porque já está público o negócio’”, disse Márcia à Agência Brasil.
Ainda hoje, em uma pasta, Márcia reúne todos os recortes de jornais da época. Segundo ela, ali começava a peregrinação para ver restabelecida a verdade em torno da morte do pai. “Era difícil até para conseguir advogado, porque as pessoas tinham medo de pegar essa ação. Só conseguimos com a ajuda da Cúria [por meio de dom Paulo Evaristo Arns]”.
Impunidade
Passados 40 anos da morte de Manoel Fiel Filho, torturado e assassinado na carceragem do DOI-Codi do 2º Exército, em São Paulo, impunidade e falta de reconhecimento são ressentimentos presentes na família do metalúrgico. Aparecida Fiel, de 60 anos, filha mais velha, diz que, somente após 20 anos da morte do pai, a mãe Thereza recebeu o valor referente à indenização salarial pela morte do marido. “Não foi uma indenização em que eles reconhecem que mataram o meu pai. Foi cálculo da diferença da aposentadoria”, afirmou. Ela informou que, atualmente, a mãe já não recebe mais o valor complementar, pois o cálculo foi feito até os presumíveis 75 anos de Manoel. “É como se ele trabalhasse até esta idade. Agora a mãe recebe somente a pensão”, explicou.
Clique aqui e veja fotos e recortes de jornais sobre a morte de Fiel Filho
Reportagem e fotos da Agência Brasil