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Enganaram Lampião?

Por Marcelo Rocha *

No mês passado, completou-se mais um ano do massacre de Angico, que resultou na morte de 11 cangaceiros, entre eles Lampião e Maria Bonita, todos sucumbidos diante da tropa comandada pelo então Tenente João Bezerra e seus subalternos: Aspirante Chico Ferreira e Sargento Aniceto. Isso ocorreu no ano de 1938.

Muito pode ser falado sobre tal fato. Desde a chegada do maior cangaceiro ao coito do Angico, alguns dias antes, para realizar uma reunião com seus chefes de grupo — reunião da qual até hoje não sabemos qual seria o tão importante assunto — até todo o processo de localização do esconderijo seguro, após a traição do coiteiro de Corisco, que ainda condenaria outros inocentes à morte, atribuindo-lhes a sua traição.

Poderia também ser discutido como se deu a divisão do “butim de guerra”, que gerou brigas e até histórias mórbidas de decepamento de membros. Afora outras questões, que considero verdadeiramente fantasiosas, como o envenenamento, entre outras.
Como mencionei, não trataremos disso agora; vou buscar o mote deste mal escrito a partir do processo que engendrou o morticínio de Angico.

A denúncia feita pelo coiteiro de Corisco à polícia, para muitos, foi motivada por inveja e só ocorreu devido ao fato de o primeiro ter visto o segundo coiteiro fazendo uma compra significativa de queijos (chamada “partida de queijos”), que, pela quantidade, não poderia ter outra razão senão para o mister de coiteiro. A partir daí, toda uma operação de inteligência, permeada por ameaças de morte e torturas, foi engendrada até que a tropa de Bezerra efetivamente chegou ao coito, naquela madrugada chuvosa de 28 de julho.

Como não vou descrever em detalhes, foquemos na questão de que toda essa operação complexa só foi necessária devido às incontestáveis características de liderança, perspicácia e presença de espírito de Lampião, não apenas para estabelecer suas estratégias de ação, mas também, e principalmente, suas medidas e contramedidas de segurança. Seus perseguidores e/ou inimigos, inclusive, reconheciam essas características, comprovadas nos embates e perseguições enfrentados.

Nesse contexto, destaca-se o papel dos coiteiros, que eram responsáveis por fornecer alimentos e outros itens, como tecidos para confecção de roupas, peças de couro, como chapéus e alpercatas, além de armas e munições.

Aqui cabe diferenciar que os coiteiros que forneciam armas não eram os sertanejos humildes das caatingas, pois estes não tinham acesso a balas de fuzil, nem a fuzis.
Diante de tudo o que foi aqui preliminarmente exposto, será possível aceitar que Lampião pudesse ter caído em uma trama urdida sobre argumentos claramente fantasiosos?

Vejamos o caso da morte do cangaceiro Zé Baiano.

Este foi morto à traição pelo seu próprio coiteiro — a história da traição parece fundamental ao extermínio dos criminosos mais perigosos. Isso ocorreu em Alagadiço, localidade do Município de Frei Paulo, onde o cangaceiro montou uma de suas bases de operações, dentro da região sob seu domínio/responsabilidade.

A morte de Zé Baiano foi um evento incomum. Os relatos daquela época mencionam a possibilidade de haver dois cangaceiros mais ricos que o próprio Rei do Cangaço: Zé Baiano e Luiz Pedro.

No caso de Zé Baiano, sua fortuna seria em boa parte fruto do exercício da agiotagem, o meio de reinvestir o dinheiro dos seus crimes. Os relatos indicam que o cangaceiro possuía algo em torno de 700 contos de réis, dos quais uns 200 contos de réis estariam emprestados a comerciantes aracajuanos, e boa parte do restante estaria emprestada a fazendeiros e donos de engenho em todo o Estado. No dia de sua morte, levava pouco dinheiro — talvez 6 contos — e, quando questionado por um dos seus executores, respondeu que o restante estava emprestado. O próprio executor, segundo Alcino Costa, era seu cliente.

Outro elemento a considerar é o fato de Zé Baiano ter sido o primeiro cangaceiro, oficialmente, a ter seu corpo exumado pela polícia do Estado, que deslocou o próprio Chefe de Polícia do Estado — função equivalente à atual Secretaria de Segurança Pública —, o médico legista Carlos de Menezes e uma escolta da Força Pública. Ao final, a morte de Zé Baiano ainda renderia um prêmio de 9 contos de réis, dado pelo Estado.

Enfim, com a morte de “o homem de Sergipe”, alguns especulam que Lampião planejou vingança, que seria executada com a invasão ao povoado Alagadiço, onde moravam os responsáveis pela morte do cangaceiro.

Lampião, do que se sabe, dirigiu-se ao local da chacina cerca de três meses depois, rezou um ofício junto à cova coletiva e depois foi noticiado que sua presença já estava em território baiano.

Há uma versão que afirma que ele desistiu de invadir Alagadiço ao saber que o povoado estava todo cercado de trincheiras e armado com um canhão para lhes opor força. No entanto, de fato, não existia nem trincheiras nem o tal canhão. O que houve foi o acionamento de uma ronqueira, que, apesar de não disparar nenhum tipo de projétil, sua percussão gerava um estampido decorrente da explosão de pólvora em seu interior.

É neste ponto que reside uma incongruência.

Antes de prosseguir, importa esclarecer que é impossível contar a história do Cangaço de modo seguro e/ou totalmente assertivo. Infelizmente, o grosso do que se sabe sobre o tema decorre de depoimentos de quem viveu o fenômeno, seja como cangaceiro, policial volante ou pequenos coiteiros (uma vez que os grandes coiteiros se calaram, em regra), além dos que conviveram com essas pessoas e contaram o que delas ouviram. Existem poucas referências formais (leia-se documentos). Para se ter uma ideia, apesar de tudo o que se sabe/conta, existiram poucos processos criminais contra Lampião.

Assim sendo, diante do que foi dito, chama a atenção a possibilidade aventada de Lampião ter planejado uma vingança diante da morte de Zé Baiano, a ser executada com a invasão de Alagadiço, e, em pouco tempo, haver desistido do referido plano diante do receio das supostas trincheiras e do canhão que guarneciam a cidade.

Acreditar que ele desistiu de seu intento por isso vai de encontro a toda a literatura, depoimentos, etc., que o reconhecem como o líder perspicaz e sagaz, capaz de criar uma rede de informantes e fornecedores que o sustentou por quase duas décadas, além do seu conluio com diversos coronéis nordestinos, que também lhe serviam como coiteiros — bem como se beneficiavam dos serviços de morte e destruição do cangaceiro — sendo os principais fornecedores de fuzis e balas, desde que Padre Cícero lhe dotou deste armamento restrito em conluio com Floro Bartolomeu para combater os comunistas da Coluna Prestes.

Existiam, no bando, ex-militares de verdade, que certamente dividiam seus conhecimentos sobre armamento e técnicas militares que traziam consigo, por mais incipientes que fossem, e certamente eram capazes de expor as dificuldades e limitações de transporte e manejo de um canhão, por exemplo. Certamente, por não ser algo de difícil percepção, os cangaceiros tinham noção de que, por exemplo, uma metralhadora seria um problema muito maior que um canhão: seja pela sua cadência de tiro, manobrabilidade e transporte.

Por outro lado, diante do sistema de informações de Lampião, parece muito pueril acreditar que ele foi demovido da ideia, crendo realmente que havia um canhão em Alagadiço, sem antes verificar tal possibilidade, o que invalidaria a existência/confiança em seu sistema de informações, uma vez que não só foi incapaz de identificar o movimento prévio de transporte de tão inusitado artefato — que certamente só existia na capital — como também de confirmar que ele de fato estava no povoado.

Imaginemos Lampião aproximando-se de Alagadiço e ouvindo o estouro de uma ronqueira, sem saber tratar-se de tal artefato, e, crendo ser um canhão, desistisse do intento vingativo devido ao estampido. Para que isso tivesse acontecido, ele teria que não ter buscado informações sobre como estava o povoado no que diz respeito à segurança ou, se o fez, todos os seus informantes lhe repassaram a falsa informação, o que nos leva a outra questão.

Se todos os que o informaram sobre o canhão mentiram, propositadamente ou não, certamente teriam que manter a versão do canhão, mesmo sendo mentira, algo que ele logo saberia ser, o que certamente resultaria em cobranças de sua parte aos que o enganaram. Não temos nenhum registro que corrobore tal possibilidade.
Mas vamos tratar do artefato que teria causado a explosão que foi o sinal de confirmação do canhão que “assustou” Lampião. Trata-se de uma ronqueira.

Dependendo do seu tamanho, pode ser um brinquedo ou uma espécie de sinalizador sonoro. Em suas variações, pode ter mais de uma finalidade. Seja um brinquedo ou uma ferramenta, o fato é que tal artefato não era novidade naquele momento, sendo inclusive popular em festas. Vejamos a notícia publicada no jornal estanciano “A Razão”, em 1916:

“O digno Delegado Regional, capitão Caetano, proibiu que a nossa meninada soltasse os seus pitus, brinquedo este que ainda não prejudicou a ninguém. Julgamos que o digno Delegado deve revogar esta sua proibição, pois os tais pitus não estão compreendidos no edital do exm. Dr. Chefe de Polícia, que somente proibiu buscapés, bombas, tiros de ronqueiras.” (Feitoza, 2014).

Logo, mesmo que Lampião desconsiderasse ter sido enganado pelo seu serviço de informações ou se tal serviço fosse ineficiente ao ponto de não conseguir perceber toda a logística diferenciada que envolve o transporte de tal engenho bélico, ainda assim precisaríamos crer que o cangaceiro desconhecia a existência de ronqueiras, enquanto capazes de provocar estampidos similares aos de um canhão.

No seu texto, “A Ronqueira”, Humberto de Campos faz pilhéria sobre o casamento, quando aproveita para explicar que durante o evento, a ronqueira troveja algumas vezes, para sinalizar o andamento do mesmo, demarcando o costume religioso do seu emprego, sendo acionada na frente do templo religioso.

Portanto, não parece ser razoável questionar se Lampião, com suas características diferenciadas de líder cangaceiro e todo o aparato logístico à sua disposição, dentro do Estado em que mantinha amizades consistentes com a velha coronelança — aquela que sustentava a República Velha —, foi realmente iludido por uma fofoca lançada ao vento por um coiteiro de baixa monta. Além disso, o cangaceiro morto era certamente o maior agiota da região, credor de muitos que certamente estavam longe de serem humildes trabalhadores, dado o volume de dinheiro que se supunha estar em mãos de tais devedores.

Ao final e ao cabo, não é incomum agiotagem envolver notícias de morte em algum momento. Sobre quem vai morrer, nesses casos, depende do momento, dos interesses e da articulação de cada um.

* É tenente coronel, membro da Academia Brasileira de Letras e Artes do Cangaço. email eduardomarcelosilvarocha@yahoo.com.br

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