Por Antonio Samarone *
Não almejo o ócio sagrado (o sacerdócio), contento-me com o ócio contemplativo, do espírito e do pensamento.
O trabalho é uma condenação bíblica, uma punição pela transgressão de Adão e Eva: “Comerás o teu pão, com o suor do teu rosto.”
Com o capitalismo o ócio virou preguiça. Não sei se por isso, a preguiça encontra-se entre os sete pecados capitais. Na infância e na velhice o ócio ainda é tolerado.
Na casa de Alaíde, mãe de Fobica funileiro, tinha uma espreguiçadeira. Éramos vizinhos, no Beco do Ouvidor.
Na infância, eu adorava visitá-los para apreciar a habilidade de Fobica furando ralos, num cepo de gameleira e descansar na cadeira preguiçosa da vizinha.
Bendita espreguiçadeira, onde a minha preguiça infantil se deleitava. Não sei se todos sabem o que é dar conforto à preguiça. Condições para a preguiça se manifestar livremente, sem cobranças, sem peso na consciência.
Deixar a preguiça ganhar asas.
Precisamos retomar a tese de Paul Lafargue, genro de Marx, sobre o “Direito à Preguiça”. No século XIX faltavam as condições materiais. Só o trabalho produzia riquezas.
Entretanto, com a inteligência artificial, a automação, a robótica e outras pós-modernidades. Podemos pleitear o direito de não fazer nada, viver ao léu, batendo pernas.
“Uma estranha loucura dominou as classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura traz como consequência misérias individuais e sociais que há séculos torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda que absorve as forças vitais do indivíduo e de sua prole até o esgotamento.” – Lafargue.
Cristo, em seu sermão na montanha, pregou a preguiça: “Contemplai o crescimento dos lírios dos campos; eles não trabalham nem fiam, e não obstante, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho.”
Sentir a preguiça tomando o corpo e a alma. A preguiça cantada por Vinicius de Moraes, na praia de Itapoã. Uma preguiça alimentada pelo calor sufocante, pelo tempo parado, pelo silencio que cria visagens, onde qualquer fresca pareça que veio do Céu ou do Mar.
A espreguiçadeira artesanal, com lona de boa qualidade e opções ergonômicas de conforto, só Alaíde possuía. Uma espreguiçadeira da lavra de seu João Mena, marceneiro especialista em tamboretes, que morava no mesmo Beco.
Na atual fase da velhice, do ócio contemplativo, senti que está faltando alguma coisa. Há um desconforto, um incômodo, uma carência. Depois de um longo período de meditação, decifrei o enigma: falte-me uma boa espreguiçadeira.
O Rei possui o trono, o professor a cátedra, o político o palanque, o padre o púlpito, cada um possui a sua cadeira, o seu lugar de fala.
A espreguiçadeira é a cadeira do preguiçoso.
Não se exerce o divino ócio em pé, nem sentado em qualquer cadeira ou banco. A espreguiçadeira é obrigatória.
Ando a procura de uma espreguiçadeira feita por João Mena. As indústrias fazem espreguiçadeiras de todos os tipos e qualidades. Nenhuma presta! Todas desconfortáveis. Nenhuma chega aos pés da espreguiçadeira de Alaíde.
Já pedi a um primo em Itabaiana, para procurar em todas as marcenarias da redondeza, são mais de duzentas, para encontrar um discípulo de João Mena, alguém que tenha aprendido com ele essa bela arte.
PS: João Mena era o pai de Theotônia e André, padecentes de doidice benigna.
Quem souber onde encontrar essa qualidade de espreguiçadeira, me avise.
* É médico sanitarista
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Maravilhosa reflexão, bençãos!