Por Antonio Samarone *
“O que há em mim é sobretudo cansaço, não disto nem daquilo, nem sequer de tudo ou de nada: cansaço assim mesmo, ele mesmo, cansaço.” Fernando Pessoa.
O envelhecimento é um acontecimento abrupto, repentino, que ocorre aos pulos. Chega de vez. Pacheco vive numa fronteira entre o ontem e o amanhã, insiste em não perder o seu lugar no mundo. A aposentadoria foi um duro golpe, rompeu os últimos elos da vida social.
Pacheco estava de férias de si mesmo. Ninguém sabe onde a velhice leva. A gravidade do envelhecimento depende do apego a vida cotidiana e aos sonhos. A velhice é um cansaço que o descanso não resolve.
O silencio é um atalho que evita aborrecimentos. Pacheco vive pensativo, acabrunhado, entediado, luta para aprender a não ser mais nada.
Afastou-se do mundo, escondeu-se num puxadinho da casa de um filho rico. Tornou-se um peso para a família. Os filhos não podem amparar a decadência do pai.
Entretanto, Pacheco não quer morrer, deseja apenas o anonimato, a solidão ontológica.
Os filhos, numa crise de sinceridade, decidiram procurar uma casa de repouso para Pacheco. A justificativa era racional: o valor da aposentadoria custeava as despesas e lá, ele seria bem atendido. Banho na hora certa, fraldas limpas, sofás confortáveis nos corredores e TV na Globo.
O descanso eterno começa em vida.
Pacheco sentiu-se ameaçado e impotente. O asilo é o verdadeiro cemitérios dos vivo, disse ele. Enganou-se Lima Barreto, o cemitério dos vivos não é o manicômio.
A internação em asilos suprime a identidade social, apaga a história pessoal e rompe os vínculos familiares. A ameaça do asilo, levou Pacheco ao desespero. Era as profundas do inferno.
Pacheco emudeceu, parou de comer, desligou o telefone, e foi acometido de estranhos pesadelos. Em todos, a sombra da foice da morte estava como pano de fundo. Era o conhecido pressentimento: vou morrer!
Isso durou sete dias. No oitavo, Pacheco sentiu uma dor intensa no peito, puxando para as costas, suor frio, própria dos infartes fulminante. Não tinha dúvidas, era ela, a morte. O SAMU chegou em tempo recorde.
No hospital, Pacheco recebeu um tratamento de príncipe. Fez todos os exames em tempo recorde e o Leito na UTI reservado.
Pacheco se arrependeu de alguns pecados e rezou baixinho. Antes de subir na maca derradeira, gritou a todos pulmões: “Fora o fascismo!” E deitou-se conformado.
Para surpresa da medicina os exames de Pacheco estavam em ordem: o coração batia compassado, o pulmão respirava, o cérebro pensava, o rim filtrava as impurezas.
O corpo de Pacheco dava para o gasto. A ansiedade, era o medo da morte e dos sofrimentos naturais da velhice.
O médico, educado, cientificamente bem formado, disse convicto: “Pacheco, pode ir embora, você não infartou, não foi dessa vez.” Entretanto, Pacheco tinha convicções sólidas, nada o removia da ideia do infarte fulminante.
Pacheco lembrou-se das lições do sábio Aristeu, seu professor no ginásio da Estância.
“O nosso primeiro inimigo aparece sob a forma de lobo, nos ataca de fora; depois sob a forma de rato, o ataque é subterrâneo e se combate através da higiene; o estágio seguinte é o ataque sob a forma de besouro. Finalmente, o ataque é viral, mais difícil de defender-se.”
“Entretanto, na hora da morte, o ataque é neuronal, psíquico, é uma violência sistêmica e fulminante, torna a alma indefesa.”
Pacheco bradou na ante sala da enfermaria masculina: “doutor, quem infartou foi a minha alma. Os velhos não têm assento na Sociedade do desempenho, nem disputam.”
Em meu reencontro com o Pacheco, já em casa, ele foi sucinto: “estou tomado de melancolia e mau humor”, e deu uma gargalhada.
Deus proteja Pacheco desses aborrecimentos.
* É médico sanitarista