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A morte de Deus

Por Clóvis Barbosa *

Apesar de jovem ele já tinha dois filhos, o último com poucos meses de nascido. Trabalhava numa lanchonete no Centro de Santos, cidade paulistana. Trabalhava duro: das seis às vinte horas, de segunda a sexta e até as dezesseis no sábado. Os amores de sua vida? A família e o Santos Futebol Clube. Naquela noite de domingo do ano de 2014, ele estava no ponto de ônibus, com a camisa e bandeira alvinegras. Estava alegre. O seu clube acabava de ganhar do São Paulo e assumia a liderança do campeonato estadual. Estava voltando para casa. De repente, dois carros param e descem vários homens armados com barras de ferro e, ali mesmo, massacram impiedosamente o jovem torcedor, reduzindo-o a um monturo de carne e sangue. Morreu no local. No enterro, sua mãe, inconformada com o evento, gritava histericamente que “Deus não existe”. Interessante, em “A Gaia Ciência”, obra de 1882, Nietzsche coloca na boca de um personagem revoltado a frase “Deus está morto”. Na verdade, em alguns momentos, as emoções e as forças irracionais exercem um papel importante no comportamento humano. A propósito, o grande debate que se travava na época desse acontecimento com o jovem santista era a cultura da violência instalada nas manifestações públicas. As opiniões pululavam diuturnamente nos meios de comunicação, umas justificando o vandalismo, outras exigindo medidas repressivas. Entre um e outro entendimento, todos faziam questão de esquecer as lições primárias estabelecidas para o regime democrático: o respeito às normas e às instituições que, para Bobbio, é o primeiro e mais importante passo para renovação progressiva da sociedade.

Para ele, a democracia é, no essencial, um método de governo, um conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas, no qual está prevista e facilitada a ampla participação dos interessados. Em outras palavras, a democracia se resume no respeito às regras do jogo. Lamentavelmente, estávamos perdendo a guerra, muitas vezes pela leniência do Estado, que assistia de camarote o descontrole social que avançava consideravelmente pelo Brasil afora. Anatol Rapoport é biomatemático, psicólogo, filósofo e cientista social. Ucraniano, tornou-se cidadão americano e foi professor das universidades de Toronto e MIchigan. Morreu em 2007. No seu livro “Lutas, jogos e debates”, ele coloca em cheque o funcionamento dos conflitos humanos. Ele diz que, na luta, o adversário é um obstáculo que precisa ser destruído impiedosamente. No jogo é diferente, o adversário é uma peça importante. Quanto mais forte ele for, mais respeitado ele será. E por que isso? Porque as regras são respeitadas e isso faz o jogo valer a pena. A grande realização é, justamente, ganhar a batalha pelo talento e pela estratégia montada. No debate, os adversários dialogam procurando um convencer o outro. Lamentavelmente, quando uma das partes não consegue ganhar pela persuasão, utiliza-se das técnicas de luta (violência, calúnia, ameaça, etc.), o que não é recomendável eticamente. Diferentemente, portanto, do jogo, as técnicas usadas pela violência urbana são somente as da luta e, em alguns momentos, as do debate com tudo de nocivo que possa existir. Foi uma fase difícil a que viveu o Brasil naquele ano de 2014, pré e pós eleições para Presidente da República.

Por qualquer bobagem as ruas, avenidas e estradas rodoviárias eram fechadas. Mandavamo direito de ir e vir de terceiros às favas. A guerra de torcidas de futebol, os linchamentos públicosnum autêntico olho por olho dente por dente, o vandalismo nas manifestações públicas, a desmoralização do aparelho policial por setores organizados – como a ocorrida em Brasília, onde policiais foram acuados e agredidos – mostravam o retrato de uma cultura de violência que se enraíza no dia a dia do brasileiro. O quadro eratão chocante que um membro dos “black blocs”,sobre a Copa do Mundo que se aproximava, em entrevista ao Estadão, disse que “Nossa táticanunca foi ferir civis, mas, se não formos ouvidos, a gente vai dar susto em gringo. Não queremosmachucar, mas, se for preciso ‘tacar’ (coquetel) molotov em ônibus de delegação ou hotel em que as seleções vão ficar, a gente vai fazer”. E por aí ia a barbárie. Agora, também, pelo viés da desmoralização das instituições e dos pilaresque compõem a democracia. Sei não! Quando a luta, no exemplo de Rapoport, vence, em detrimento do jogo ou do debate – este sem asregras sujas – alguma coisa está fora da ordem. E até a crença em Deus poderá deixar de serrazoável. E se Ele está morto, os ideais de ummundo melhor, as lutas contra a barbárie e adignidade cidadã perdem o sentido.

* É advogado, ex-presidente da seccional da OAB e conselheiro aposentado do Tribunal de Contas de Sergipe.

(Artigo publicado originalmente no Jornal da Cidade)

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