Por Antonio Samarone *
Como durante as guerras, as pestes obrigam as pessoas a conviverem com a morte.
A pandemia quebrou uma tendência secular. O ocidente tinha se distanciado da morte. A sociedade tenta “domar” a morte, prefere não falar neste assunto. Fingimos que a morte não existe.
As pessoas desaparecem, passam, vão para uma melhor, e não falamos mais sobre elas. Conversaremos mais tarde, quando tivermos esquecido que elas estão mortas.
Por outro lado, a morte provoca um misto de medo e fascínio.
A notícia da morte do outro causa um alívio secreto e um pensamento brota espontâneo: “ainda bem que eu continuo vivo”. Muitas lamentações são falsas. Os pêsames, no geral, são formalidades.
As mortes individuais são sentidas pelas vítimas com acidentes, ataques ou doenças que ainda continuam a derrotar a medicina. Não existe a morte natural! O inconformismo é geral: “por que eu?”.
“Todos os homens são mortais, mas para cada um à sua morte é um acidente e, mesmo que saibam e consintam, uma violência inusitada.” – Simone de Beauvoir.
A pandemia trouxe a morte para vida cotidiana.
Como conviver com as mortes pandêmicas sem sustos nem espantos, com naturalidade? Como a sociedade pôde habituar-se a tantas mortes?
As providências para o esquecimento foram tomadas.
A Saúde Pública alegou razões sanitárias para esconder os mortos. Determinou o sepultamento imediato, sem velório ou despedida. O sofrimento foi limitado a família e aos mais próximos. A morte foi transformada numa estatística diária divulgada ao final da tarde.
Sem a imagem do morto e com a proibição dos rituais da morte a sociedade foi anestesiada, minimizando o impacto da Peste.
Apenas os sepultamentos em valas comuns chocavam. A memória atávica, nestes casos, trazia o medo.
A divulgação do número de mortos era concentrada em pessoas mais velhas e com patologias. O poder público divulga a relação diária dos mortos sem nominá-los, impessoalmente, e exagerando na situação de fragilidade deles: velhos e doentes. Muitos pensavam: “Eu não sou como aqueles que estão morrendo, não corro tanto perigo.”
A minha escola primária liberava os alunos para acompanharem os sepultamentos dos “anjos”. A elevada mortalidade infantil era naturalizada com a transformação das crianças em “anjos”. Não havia tristeza, nem dos pais.
No caso da Pandemia, houve muito medo no início, onde não havia respiradores suficientes e as UTIs estavam lotadas. A criação de novos leitos de UTI, mesmo precários, reduziu esse pavor. A certeza de uma morte assistida, sem a falta do oxigênio e indolor foi um grande paliativo.
As narrativas sobre a Pandemia foram meticulosamente construídas e divulgadas pedagogicamente pela imprensa. Mesmo nessa reta final, cada gestor apresenta-se como o “pai” da vacina e como o grande responsável pelo declínio da pandemia.
Sem eles, “cuidando da gente”, a Peste seria eternizada.
Mesmo com a manipulação, a pandemia trouxe mudanças nas consciências: deixou claro a nossa vulnerabilidade aos fenômenos naturais, a limitação da ciência e da medicina, a incapacidade das organizações políticas e sociais e a permanência da irracionalidade das pessoas diante dos imprevistos.
Na ausência de um tratamento eficaz, condutas fantasiosas foram prescritas, até por profissionais bem formados, e adotadas. no desespero, por muitas vítimas. Os profetas do “kit cloroquina” silenciaram!
Os fatos estão sendo parcialmente apurados, para a necessária responsabilização criminal, pelo menos, dos mal-intencionados e dos que lucraram com essa especulação.
A boa fé deve ser perdoada!
* É médico sanitarista