Por Adiberto de Souza *
Para divulgar sua marca recém introduzida no estado, uma cervejaria promoveu concorridos passeios noturnos pelo estuário do Rio Sergipe. Com saída do cais dos mercados centrais de Aracaju, a farra náutica era regada a drinques coloridos, saborosos quitutes, boa música e, claro, cerveja à bessa. Isso foi no começo dos anos dois mil. O ingresso para os homens era uma camisa de malha bem colorida. As mulheres recebiam um colar havaiano e uma pulseira lilás, entregues com antecedência pela assessoria de comunicação da empresa.
Numa das noites, o iluminado barco zarpou rio acima, na direção da Barra dos Coqueiros. Depois, retornou vagarosamente rumo ao lado sul do estuário. A fuzarca em seu interior era supimpa: boa conversa, bebidas e comida à vontade, além da agradável brisa vinda da boca da barra. Enquanto se divertiam, os pouco mais de 50 convidados e convidadas apreciavam Aracaju por ângulos diferentes, até que o barco lançou âncora em frente à Atalaia Nova. E o pagode continuou comendo solto. Havia só um porém: o passeio tinha hora pra acabar, pois o retorno ao cais dos mercados — onde a mordomia sempre continuava até a madrugada — teria que ocorrer ainda na maré cheia.
Carnaval no meio do rio
Aliás, esse evento promovido pela cervejaria lembrou outra grande festa, também no estuário do Rio Sergipe. Aconteceu bem antes, na década de 80, quando aportou em Aracaju o Lourinha, um velho barco que deu com os costados por aqui graças ao apoio da incipiente Diretoria Estadual de Turismo. “Era uma nau já churriada de grandes aventuras pelo mundo afora, cansada de guerra e incapaz de pretender grandes viagens. Foi ficando ali, funcionando como uma boate muito seletiva, frequentada por endinheirados que precisavam esconder suas comilanças e seus amores clandestinos”, descreve o poeta e jornalista Amaral Cavalcante.
Também numa noite enluarada, o Lourinha ancorou no meio do rio para ser palco do famoso “Baile dos Artistas”, prévia carnavalesca promovida pelos irrequietos João de Barros e Antônio Lisboa, este hors-concours do afamado desfile de fantasias do baile. Amaral lembra das plumas e dos paetês “que o articulado Lisboa trouxe dos mais elegantes e vistosos rincões do transformismo nacional”.
E o poeta afirma queixoso que “o entendimento da diversidade e a consolidação das liberdades individuais era um derivativo batalhado por todos nós. Então, quem transpôs os limites da cidade, pulando do batente da Ponte do Imperador à lúdica aventura das permissividades no Lourinha, teve uma noite gloriosa, tão bela quanto condenada, tão memorável quanto abafada pela opressão social, e por isso mesmo posta, até hoje, na vala do esquecimento”, frisa.
Certamente não por coincidência, depois daquele “Baile dos Artistas” realizado no meio do rio, o vistoso barco Lourinha desapareceu da costa sergipana, levando consigo a sua animadíssima boate flutuante. Uma pena!
Pois bem, voltemos ao nosso passeio etílico:
Para agonia da tripulação e dos passageiros, o motor do barco começou a falhar tão logo a âncora foi içada para o retorno ao cais dos mercados. Ressalte-se que, enquanto tentava consertar o surrado Yamaha, o comandante, já bem “chumbado”, não percebeu que, após a desancoragem, a nau ficou à deriva, sendo levada pelas águas vazantes rumo à perigosa boca da barra, onde o “Sergipe” desagua no Oceano Atlântico. Pense na agonia dos bebinhos e das bebinhas a bordo? Âncora lançada a tempo ao “mar”, todos passaram a rezar pelo motor. Felizmente, o velho marinheiro também era um bom mecânico e não demorou muito para fazer o conserto.
Motor ligado, o barco partiu, porém a maré já vazava há muito tempo, expondo do outro lado um vasto lamaçal entre o rio e o cais dos mercados. O jeito foi apoitar no meio do “Sergipe” para esperar a próxima maré cheia. Diferente do Lourinha, onde os animados foliões do Baile dos Artistas nem perceberam a noite passar, os agora acabrunhados convidados da cervejaria rezavam que as águas voltassem a subir antes dos primeiros raios de sol daquele sábado: “O que é que eu vou dizer em casa?”, perguntavam alguns, já antevendo a iminente crise conjugal.
Pontual, a maré começou a encher na madrugada, contudo só ofereceu calado ao barco quando os concorridos mercados já funcionavam a todo vapor, fervilhando de gente. Seguramente, muitos dos espantados feirantes e fregueses jamais descobriram de onde vinha aquela colorida e alquebrada trupe, com alguns de seus “marujos” muito bêbados e outros já curtindo uma ressaca dos diabos.
Que cerveja horrível.
Nunca mais!
* É editor do Portal Destaquenotícias
7 Comments
É muito prazeroso para mim, ler sobre os acontecimentos de um passado da nossa amada Aracaju. Ainda mais, quando a narrativa se dá em um texto como esse tão construído.
Aplausos pra você, e para o seu belíssimo trabalho, Edilberto.
Hoje amanheci muito feliz ao ler essa linda narrativa me senti como se fosse uma bêbada ou uma bebidinha dentro desse barco não o da cervejaria mas da loirinha amei a narrativa me transportei mentalmente para o lindo barco vendo ao meu lado barrinhos e Lisboa obrigada por essa linda narrativa
Parabéns. Sempre textos muito bons
Belíssimo texto !
Reviver fatos de nossa cidade é sempre enriquecedor. O texto muito bom e as “figuras” citadas: Amaral Cavalcante, João de Barros e Antônio Lisboa, pessoas que fizeram diferença em nossa sociedade.
Parabéns, Adiberto!
Man, que fantástico. Parabéns duas vezes: pelo estilo de escrita e pela propria estória em si.
Excelente texto e boas lembranças de João de Barros e Lisboa. Uma boa aventura.