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A República resiste

Marcos Cardoso*

O governo Bolsonaro, de triste memória, deixa como legado os zumbis patriotas, a defesa insana de uma pandemia, a política de salvação da própria família, a violência institucionalizada contra os povos originários e as comunidades tradicionais, o ataque especulativo ao meio ambiente e, com esses, a elevação de um governo brasileiro à condição de pária da humanidade, além do uso indiscriminado do aparelho do Estado para se manter no poder a qualquer custo, incluindo as Forças Armadas.

O governo Bolsonaro foi um duro teste para a democracia. A República do Brasil resistiu e sai fortalecida.

O Brasil possui uma tradição de poder militar que é difícil romper. Desde 1889, quando se materializou como possibilidade de organização do poder para atender ao interesse comum e em conformidade com uma lei comum, a República nasceu de um golpe militar cavalgado por aqueles que oportunamente se apropriaram da campanha contra Dom Pedro II e o Império.

A Revolução de 1930 foi um golpe militar que depôs o presidente da República Washington Luís, impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes, pôs fim à República Velha e concedeu a Getúlio Vargas a chefia de um “Governo Provisório”. Em 1937, sempre apoiado pelos militares, Getúlio deu o golpe dentro do golpe, instituiu o Estado Novo e a ditadura de fato, que durou até 1945.

Desde então e até 1964, o país viveu uma democracia assustada, mais participativa e menos elitista do que aquela da República Velha, mas assombrada pelas forças ocultas que nunca a deixaram de ameaçar com uma quartelada. Até que os ressentidos da FEB, como diria Joel Silveira, tomassem o poder, do qual só desapearam 21 anos depois.

Foi a partir de 1985 e mais expressamente com a Constituição de 1988 que o Brasil finalmente amadureceu para a vida democrática, elegendo livremente seus governantes, garantindo a alternância de poder e assistindo às mais livres expressões da liberdade. Imprensa e artistas nunca foram tão livres.

Então veio o governo de Jair Bolsonaro, um filhote da ditadura, no dizer de Leonel Brizola, o capitão reformado do Exército e ex-deputado que um dia afirmou seu desejo de dar um golpe de estado caso chegasse à presidência da República. Ele chegou e tentou.

Desde o dia primeiro de janeiro de 2019, Bolsonaro articulou o tão sonhado golpe. Divulgou e repetiu sem nunca ter provado que houve fraude na eleição de 2018, aquela vencida por ele mesmo. Segundo a mentira insistentemente compartilhada, ele teria vencido a eleição no primeiro turno. A intenção era e ainda é desmoralizar o sistema eleitoral, agora por não aceitar a derrota incontestável.

Ele segue a cartilha da extrema direita mundial, que tem Steve Bannon como guru, de carcomer a democracia por dentro, uma vez tendo chegado ao poder pela via democrática. É a cartilha do ditador eleito, que não precisa de golpe militar para se perpetuar no poder, tais quais os ídolos bolsonaristas Vladimir Putin, na Rússia, e Viktor Orbán, na Hungria. Recep Tayyip Erdogan, na Turquia, Rodrigo Duterte, nas Filipinas, e Nicolás Maduro, na Venezuela, são outros exemplos desses falsos democratas.

O ditador eleito é um populista autoritário, provavelmente conservador e corrupto, que prioriza atender aos seus seguidores e financiadores, é intolerante às diferenças, abomina as minorias e não vacila no uso da força contra os opositores. Não é apegado necessariamente a uma ideologia e quase sempre é mandatário de um país que ainda busca a trilha do desenvolvimento. Engana a maioria e se elege em nome de construir uma nova sociedade. Não é mera coincidência.

Mas além de todos os erros, primários até, que cometeu, Bolsonaro não contava enfrentar três fortes adversidades: que o Brasil tivesse instituições tão sólidas para resistir a seus ataques golpistas; que o povo brasileiro tivesse tanta força para exigir mudanças e o retorno ao trilho da democracia; e que Lula voltasse triunfal, um quase morto político que ressurgiu com seu conhecido poder de arrastar multidões e dessa vez disposto a dialogar com antigos adversários.

A direita democrática, incluindo representantes destacados do mercado e economistas liberais, em sua ampla maioria, quase sempre esteve contra Lula e o PT. Em 1989 estava com Fernando Collor, em 1994 e 1998 estava com Fernando Henrique Cardoso, em 2002 estava com José Serra, em 2006 com Geraldo Alckmin, em 2010 com Serra de novo, em 2014 com Aécio Neves e, em 2018, com Bolsonaro. Mas não desta vez. Pela primeira vez está com Lula.

Todos que não aguentam mais as bizarrices de Bolsonaro se juntaram a Lula porque viram nele o único capaz de derrotar o péssimo governo que se encerra. E assim confirmar a previsão feita pelo próprio Lula em março de 2016, quando já corria o processo de impeachment de Dilma Rousseff, concluído em agosto daquele ano: “A partir de agora, se me prenderem, eu viro herói. Se me matarem, viro mártir. E se me deixarem solto, viro presidente de novo”.

Lula foi preso no dia 7 de abril de 2018 e ficou encarcerado na sede da Polícia Federal em Curitiba até o dia 8 de novembro de 2019. Saiu para virar presidente de novo quando o Brasil mais precisa dele. Assim, a República resiste e sairá fortalecida.

*É jornalista.

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