Gilfrancisco*
Ficcionista sergipano, Armindo Pereira (1922-2001) nasceu com a literatura nas veias, vários contos de sua autoria mereceram excelente classificação nos concursos literários de que participou. Desde a sua estreia que a crítica, imediatamente, descobriu uma autêntica vocação de homem de letras. Sua obra, anônima para os sergipanos, merece urgentemente ser reeditada pelos podres poderes do Estado. Recentemente, o pesquisador e professor da UFS Antônio Fernando de Araújo Sá publicou artigo sobre esse anonimato, dando uma contribuição notável aos futuros estudos sobre sua obra.
Armindo de Castro Santos Pereira nasceu em 8 de setembro de 1922 em Aracaju/Sergipe, um dia após as comemorações do 1º centenário da independência política do Brasil. Seu pai, Manoel Cândido dos Santos Pereira, advogado e professor, e sua mãe, Eliphia de Castro Santos Pereira, originária da cidade de Alagoinhas/Bahia, onde seus avós maternos franceses; Manoel da Paixão e Cândida da Paixão colocaram-na interna no Colégio das Freiras, recebendo fina educação. Dona Eliphia falava e escrevia corretamente o idioma francês. Seu pai Manoel Cândido, também baiano das Minas de Rio de Contas, onde seus avós paternos portugueses, Armindo Santos Pereira e Perpétua Santos Pereira, eram pequenos proprietários rurais. Esse município baiano, com uma sede situada a uma altitude de mais de 1.000 metros, possui um dos maiores conjuntos arquitetônicos coloniais do Estado e algumas das montanhas mais altas da Região Nordeste do Brasil, além de possuir povoados históricos originados dos antigos garimpos e quilombos. Seu nome deriva da antiga denominação do rio Brumado, em cujas margens surgiu o embrião da cidade ainda no século XVII: Rio de Contas Pequeno.
Pretendendo seguir a carreira religiosa, seu pai desistiu antes da ordenação, e decide estudar ciências jurídicas e sociais em Salvador. Mesmo casado, continuou profundamente religioso e servindo à igreja. Em Salvador nasceram os primeiros filhos do casal. Já bacharel pela Faculdade Livre de Direito da Bahia, transfere-se para Aracaju e passa a desenvolver as atividades de professor de latim, português, francês no Atheneu Sergipense e, por último, ensina algumas disciplinas de Direito.
O político e professor da Faculdade de Direito de Sergipe Manoel Cabral Machado (1916-2009), em artigo sobre seus mestres no Atheneu Pedro II, lembra do professor Manoel Cândido dos Santos Pereira, como um dos grandes intelectuais de Sergipe:
“Outro sábio foi o professor Manoel Cândido dos Santos Pereira – a maior cultura clássica do Estado. Mestre do Latim, do Grego e do Português. Foi ao fim da vida, magistrado.”
Aprovado em concurso público, seguiu a Magistratura como juiz de Direito, passando por várias cidades do interior sergipano: Neópolis – onde nasceu um dos seus filhos, Manoel Cândido Filho, em 1936, fruto do segundo casamento; Maruim (7ª Comarca, 1938). Armindo Pereira tinha uma irmã de nome Isaura dos Santos Pereira (1920-1961), casada com o intelectual José Augusto Garcez (1918-1992), e outra de nome Maria do Céu, ambos do primeiro casamento.
Jovem escritor
Em Aracaju, Armindo Pereira fez os estudos primários e secundários. Quando menino e adolescente, deve ter morado em Itabaiana, cidade onde sua mãe falecera. órfão de mãe, desde criança, ia todo fim de ano, nas férias escolares, veranear nas cidadezinhas do interior onde seu pai trabalhava. Em Vila Nova da Rainha, atual Neópolis, cidade banhada pelo rio São Francisco, seu pai fixou residência. Armindo vivia intensamente a intimidade do lugar, com suas ladeiras e ruas estreitas, com sua gente, usos, costumes e sentimentos, os quais, mais tarde retratou em seus escritos com fidelidade e autenticidade.
Sua vocação literária nasce das leituras e colaborações desde os 13 anos na revista O Tico-Tico e mais adiante, foi influenciado pelas leituras das obras de Kafka, Camus, Cervantes, Dostoievski, Dante e a literatura grega. Antes de seguir para o Rio de Janeiro, teve uma passagem como revisor, na Imprensa Oficial do Estado.
Tico-Tico
Foi uma publicação infantil brasileira que circulou de 1905 a 1977, a primeira e a mais importante a publicar histórias em quadrinhos no país. Lançada pelo jornalista Luís Bartolomeu de Souza, seguia o modelo da revista francesa La Semaine de Suzette. Em suas páginas podiam ser encontradas passatempos, mapas educativos, literatura juvenil e informações sobre história, ciência, artes, geografia e civismo. Fotografias desenhos dos leitores, enigmas e concursos também eram publicados. Aos 13 anos de idade Armindo de Castro Pereira (como assinou nas três colaborações localizadas na Seção Meu Jornal, órgão dos leitores d’O Tico-Tico (A criança diz no jornal o que, quer). Os textos publicados por Armindo são os seguintes: Amanhecer (Ano III, nº43, 1937), Amanhecer na roça (Ano IV, nº 12, 1938), Sinhá Moça (Ano IV, nº17, 1938) e O Canto dos pássaros (Ano IV, nº18, 1938).
Amanhecer
Eis os primeiros sinais, no horizonte, nuvens rubras e sob estas, as andorinhas cortam o espaço com se voo rápido.
A terra aparece mais bela, com suas montanhas, seus vales, suas planícies. O sol apresenta-se à terra, despindo-a dos mantos de cerração noturna; sua luz se reflete no mar, esbatendo-se sobre a retina, como a querer relembrar-me os anos idos de minha infância.
O orvalho brilha sobre as plantas e os pássaros cantam.
Os colibris, os maviosos colibris, vão sugar o mel das flores; os homens se levantam; os bois mugem nos currais, enfim, tudo parece renascer! A Natureza desperta.
Mensagem
Órgão cultural , Ano I, nº3 de 7 de junho de 1939, número especial dedicado a Tobias Barreto, dirigido por Fábio da Silva, Walter Sampaio e Armindo Pereira. Colaboram neste número: José Sampaio, Maria Thétis, João Batista Lima e Silva, Floriano Mendes Garangau, Lincoln de Souza, Álvaro Moreyra. Informa o jornal Símbolo, Ano 1, nº 2, julho de 1939:
“Circulou no dia sete do corrente, em edição especial como homenagem ao invicto pensador Tobias Barreto de Menezes, este aplaudido órgão estudantil, que alcançou mais uma vitória, pela brilhante e seleta colaboração. Mensagem representou condignamente a mocidade sergipana. Estão de parabéns os dinâmicos jovens que o dirigem, assim como todos os colaboradores dos quais dependeu também o magnífico êxito desta vibrante folha estudantina.”
Sobre o conteúdo dos dois primeiros números de Mensagem, o jornal Símbolo trazia em sua edição nº 2 de julho, o seguinte comentário:
“Recebemos os dois primeiros números de Mensagem, órgão cujo timbre modernista, a par com a selecionada colaboração, vem merecendo os mais vibrantes aplausos, mormente dos espíritos que sabem apreciar literatura moderna, a arte humana. Órgão este, sob a direção dos intelectuais: Armindo Pereira, Fábio da Silva e Walter Sampaio. Mensagem inaugurou otimamente seu tirocínio de divulgador da cultura estudantina. É inegavelmente a maior expressão na imprensa estudantil.”
Tanto Mensagem como Símbolo, desempenharam papel de relevância na propagação do modernismo em Sergipe, onde velhos padrões literários foram rompidos com o ardor dos novos escritores. Mensagem dos Novos de Sergipe, criado em 26 de dezembro de 1942, na esteira do repúdio pelos torpedeamentos de navios de passeios ocorridos na costa sergipana, era uma associação de caráter cultural que congregou um grupo atuante. Esses jovens que se destacava no cenário intelectual, alguns como Walter Mendonça Sampaio, Pulo de Carvalho Neto, Enoch Santiago Filho, Luciano Lacerda, Aluysio Sampaio. Sindulfo Barreto Filho, João Batista de Lima e Silva, Lindolfo Campos Sobrinho, José Maria Fontes, José Sampaio e Álvaro Santos.
Símbolo
Órgão cultural, direção de um grupo de ginasiano – representação jornalística de José Nunes Mendonça, Walter Sampaio, José Menezes Campos e Armindo Pereira criado em 1939, formato de 32,5×28, surpreendeu a todos com sua apresentação gráfica. Dentre todos os jornais estudantis da época, graficamente (formato e mancha) este é o de melhor apresentação, a começar pela sua formatação, número de páginas e um quadro de colaboradores de destaques na imprensa local. Vejamos o editorial do nº 1, maio de 1939:
“Símbolo é um órgão cultural cuja finalidade é elevar cada vez mais o espírito sergipano, difundindo a cultura dos moços em ânsia de socorrer aos infelizes que morrem à fome, nas ruas engalanadas. Sem feição política ou regional, ele abrange todo o domínio da ciência.”
O jovem Armindo Pereira comparece em todas as edições de Símbolo: Mariinha, nº1, maio de 1939; Um fantasma na noite, nº2, julho de 1939; A questão do ferro, nº3, agosto de 1939 e Dois contistas diferentes, nº5, fevereiro de 1940.
Capital Federal
Segundo relato do companheiro de tertúlia, Paulo de Carvalho Neto, em artigo “Mas quem foi que disse que a gente morreu? de 1942, achava que “o golpe desferido sobre Símbolo pesa-nos”. Queriam se calar, mas não podiam, estavam todos atordoados, angustiados, perdidos: -Armindo Pereira chorando como uma criança. “Eu vou embora desta terra…” E foi mesmo. Walter Sampaio, publica em Símbolo nº2, julho, 1939, A nova geração intelectual de Sergipe: “As gerações são ondas de luz, que iluminam os séculos. As gerações são vidas que têm épocas, vidas que morrem deixando as sementes que germinam outras gerações”. E ele dizia que esta nova geração, “era representada também por Armindo Pereira, jovem de perspicaz audácia nas letras de Aracaju. É um jovem que marcha maravilhosamente para o caminho difícil da crítica e do conto e, por fim, do romance.
Em 1941, Armindo de Castro Santos Pereira transfere-se para o Rio de Janeiro e passa a residir durante os cinco primeiros anos, período em que cursa a Faculdade de Direito, da Universidade Nacional do Brasil – UNB – em casa do seu tio Perpétuo dos Santos Pereira, comandante da Marinha Mercante, – sempre trabalhando em jornais e revistas, eventualmente advoga.
Flagelo, Açoite e A Esfera Iluminada
Romance de estreia, Organização Simões, coleção “Romances brasileiros, Flagelo foi publicado em 1954. Neste livro, Armindo Pereira, que já havia publicado contos em suplementos literários em revistas do país, estuda a condição de miséria das populações nordestinas, seu abandono, sua ignorância, suas superstições; as inundações, o drama dos retirantes, o cangaço, a fome – tudo isso passa no quadro rasgado em tintas forte pelo romancista. A segunda edição de Flagelo saio pelas Editora O Cruzeiro, em 1957 numa edição bem cuidado, capa e ilustrações foram executadas por Darel e traz um prefácio do crítico e ensaísta, Brito Broca.
Armindo Pereira, diz que concluiu Flagelo em 1949:
“Relendo-o, compreendi que não estava concluído. Deveria trabalhar mais: o tema me parecia bom, mas a forma estava imperfeita. Até que consegui dar ao tema uma forma que me parecia definitiva. Estava terminada a tarefa. Só então em 1953, levei o livro ao editor. E nos começos de 1954 era entregue ao público.”
Flagelo esgotou-se em poucos meses. Para a 2ª edição, Armindo Pereira reviu o livro em sua maior parte, mas não reescreve, somente acrescentou inúmeros trechos novos que completam o romance, tornando-o mais compreensível e perfeito.Armindo é um ficcionista que se caracteriza pela simplicidade do estilo, por uma linguagem de sentido poético, por uma estrutura em que a notação psicológica se funde ao aspecto descritivo, fixando com grande realidade. O crítico e ensaísta Brito Broca (1903-1961), autor do prefácio, afirma que o escritor sergipano buscou inspiração para seu livro na Peste, de Albert Camus:
“Em flagelo a intenção alegórica é mais fluente, não sendo por isso menos perceptível. Sente-se que a descrição da cheia – o rio subindo, subindo, implacável e temeroso – não prevalece como um fato material em si, mas pela ideia que traduz. E essa ideia ia do “flagelo”, tomada por assim dizer na sua expressão metafísica: alguma coisa que está acima de nós, que não alcançamos, cujos desígnios impiedosos escapam às nossas possibilidades humanas.”
Apesar de se encontrar num fogo cruzado, pois à época da sua publicação, um dos problemas mais discutidos pela crítica literária, era saber se o denominado “romance nordestino”, que teve como expoente José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e outros – já havia completado seu ciclo histórico ou se continuava ainda vivo, a produzir novos frutos. Na verdade, não há, porém, como filiá-lo à chama escola do romance nordestino, reafirmando, que tem em José Lins seu representante mais típico. O que Lins é pura descrição é Armindo Pereira paisagem interior e vida subjetiva.
Açoite, romance publicado pelas edições O Cruzeiro, em 1956. Nele, as qualidades de narrador demonstradas no primeiro no primeiro livro, Flagelo, são fartamente reafirmadas, a ponto de já não persistirem dúvidas quanto à autenticidade da vocação literária de Armindo Pereira. Açoite versa sobre o ultraconhecido mito nordestino da “Nêga Fulô” – mito sobre o qual o alagoano Jorge de Lima (1893-1953), compôs seu poema mais conhecido, se bem que não o melhor. Pois bem, a despeito de tratar-se de uma história difundida, e de cujo enredo o autor não poderia afastar-se, conseguiu Armindo Pereira, nesta narrativa de 160 páginas, prende à atenção do leitor.
Explica o autor numa entrevista concedida a revista carioca Vida Literária que:
Concluindo em 1953, o segundo romance, mas na verdade, desde 1945 que me vinha amadurecendo a ideia da transposição da história do conto “Nêga Fulô” para o âmbito do romance que afinal se chama Açoite – pois o tema se prestava a isso. Como se vê, um lento e complicado processo de criação, difícil de explicar.
Açoite é um livro que se lê com interesse, com agrado.
A Esfera Iluminada – ensaios sobre livros e autores, publicado pelas Edições Livros Organização Simões em 1967, depois de onze anos do seu último livro Açoite (1956). A obra é prefaciada por Otto Maria Carpeaux, está dividida em quatro partes: a primeira “Estética Criadora”, reunindo trabalhos sobre teoria da criação e evolução estética; segunda – “Estética do Poema”, é composta de ensaios sobre a estética do poema, do conto e do romance, tendo um capítulo sobre o Nouveau-Roman; a terceira – “Perspectiva Histórica”, trata da dialética em crítica; a quarta, “Perspectiva Temporal” (comparações, interpretações e julgamento) compõe-se de estudos sobre escritores nacionais, entre eles, Adonias Filho, Brito Broca, Povina Cavalcanti, Carlos Augusto Góes, Joel Silveira e Zora Seljan. Segundo Carpeaux:
“O novo trabalho do ficcionista de Açoite passa em revista, através de comparações, referências, interpretações e julgamentos, a obra de muitos dos mais atuantes representantes da atual literatura brasileira em todas as suas formas de expressão.”
O crítico Carlos Augusto Góes, em resenha publicada na revista Leitura, diz que:
“Em A Esfera Iluminada, Armindo Pereira cuida é do artista consciente, integral, daqueles que elaboram seu trabalho sem menosprezo à intuição das normas, pois há sempre, no meio desses, os que se valem da empulhação para escandalizar, sob pretexto de arte moderna, quando os verdadeiros artistas de vanguarda têm consciência de seu labor penoso, sabem esperar, confiam na délivrance, que representa o acontecimento nesse estranho parto. Não forçam.”
Correio da Manhã (1901-1974)
Foi um periódico carioca liberal, que desde 1901, fez oposição a todos os presidentes da República, razão pela qual foi perseguido e fechado em diversas ocasiões e seus proprietários e dirigentes presos. Fundado por Edmundo Bittencourt e lançado em 15 de junho de 1901, numa época conturbada, com crises políticas e econômicas herdadas do seu passado colonial. No primeiro editorial de lançamento, Bittencourt declarou que “o Correio da Manhã não tem nem jamais terá ligação alguma com partidos políticos” e se comprometeu com a defesa dos interesses populares. Seu quadro de colaboradores de primeira linha, chamava à atenção de todos: Coelho Neto, Carlos Laet, José Veríssimo, Pedro Leão Veloso, Lima Barreto e outros.
O jornal apoiou o golpe de 1964 contra João Goulart, mas em seguida voltou-se contra a ditadura, e muitos dos seus diretores foram presos. A proprietária na época, Niomar Muniz Sodré Bittencourt, arrendou o jornal a um grupo de empresários. Foi no período em que antecede o golpe, que Armindo Pereira trabalha no Correio da Manhã, assíduo colaborador entre os anos de 1962/1964, onde cria três colunas “Questionário”, “Cinco minutos com…” e “O que vamos ler”. Fiz um levantamento dessas publicações, que se aproxima de cem. Mesmo nesse período, Armindo Pereira publica várias críticas literárias.
Nos anos sessenta, Armindo Pereira exerceu o cargo de assessor de Relações Públicas da Revista do Livro, permanecendo até fevereiro de 1969. Colaborou em duas edições: INL – Do Diagnóstico Preliminar da Cultura, nº31, páginas 121-125, 1967 e Filosofia em Verbete, nº 34, páginas 185-187, 1968.
Morte
Soube da morte do romancista sergipano Armindo de Castro Santos Pereira (1922-2001), filho de professor Manoel Cândido Santos Pereira e autor de Flagelo e de Açoite, dois modernos romances brasileiros, ignorado pelos sergipanos, por intermédio do pesquisador Jackson da Silva Lima, confirmada a data do falecimento em 3 de julho de 2001. Armindo Pereira publicou ainda: Doze Estórias (contos e novelas), 1973; Os Tesouros das Catacumbas, 1983; De Drummond a Ledo Ivo e outros estudos, 1991.
*Gilfrancisco é jornalista, escritor, Doutor Honoris Causa concedido pela UFS. Membro do Grupo Plena/CNPq/UFS e do CPCIR/CNPq/UFS