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Às favas os escrúpulos de consciência

A frase está registrada na história e tem como autor o então ministro do Trabalho e da Previdência Social, Jarbas Passarinho, durante a reunião do AI-5, em 13 de dezembro de 1968. “Às favas todos os escrúpulos de consciência”, resumiu, num discurso curto, dirigido aos seus pares militares e ao presidente Costa e Silva, aceitando “uma nova revolução”. Empurrava-se o país definitivamente para as trevas.

A frase cínica cabe bem, 47 anos depois, a muitos políticos que representam o povo brasileiro nessa quadra conturbada e decepcionante da atual história.

O último que poderia pronunciá-la é o cabeludo grisalho Delcídio Amaral. O senador, líder do governo na câmara superior, foi preso no bocejar matinal da quarta-feira, por ordem do STF, acusado de tentar atrapalhar as investigações da Operação Lava Jato.

Delcídio queria subornar o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró para que ele não relatasse à Justiça fatos que pudessem implicá-lo, e ao banqueiro bilionário André Esteves, no esquema de corrupção na estatal.

“Coisa de imbecil”, definiria Lula, depois desmentido pelo instituto que leva o seu nome. “Que loucura! Que idiota”, teria dito ainda o ex-presidente, durante almoço na sede da CUT naquele mesmo dia, ao perceber que Delcídio levou a crise institucional de volta para o colo de Dilma Rousseff.

Mas será que a Lula também não caberia plagiar aquela frase de Passarinho? É o que veremos.

O que Delcídio fez é coisa de bandido menor, amador, e o que o advogado dele faz só respalda o duro discurso da ministra Cármen Lúcia, ao votar na 2ª turma da Corte pela prisão em flagrante do senador, fato inédito na recente história democrática: “A maioria de nós, brasileiros, acreditou que uma esperança tinha vencido o medo. Depois, descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo”.

Os defensores do senador e até estudiosos do processo penal afirmam não entender a prisão, já que Delcídio não é acusado de crime inafiançável e a prova produzida contra ele é ilegal, pois se trata de gravação não autorizada. Mas por que diabos a Polícia Federal e o Ministério Público federal solicitaram, o Supremo Tribunal Federal autorizou e o Senador Federal homologou a prisão?

O senador petista foi interrogado na quinta-feira por dois procuradores da República e um delegado federal, e o advogado dele, Maurício Silva Leite, saiu do interrogatório festejando: “O senador deu as explicações de maneira contundente”. Contundente, segundo ele, foi a tese apresentada por Delcídio, de que se dispôs a ajudar o delator Nestor Cerveró por “razões humanitárias”.

Contundência fajuta. Delcídio esteve com Bernardo Cerveró, filho do ex-diretor da área Internacional da Petrobras, para transmitir “uma palavra de conforto e esperança” à família. Queria atenuar-lhes “a dor e o sofrimento”.

Na gravação-arapuca que Bernardo armou e entregou aos procuradores, ouve-se a voz de Delcídio oferecendo dinheiro, vantagens, tráfico de influência e uma rota de fuga para o pai-delator. O advogado também garante que está tudo esclarecido quanto a tentar obstruir a Justiça e melar a Operação Lava Jato.

Com essa contundência, não se sabe até onde irá a falta de escrúpulos do senador, ainda não interrogado sobre a dinheirama que ofereceu à família Cerveró em nome do banqueiro André Esteves?

A resposta talvez esteja naquele desabafo de Cármen Lúcia dois dias antes: “O crime não vencerá a Justiça. Aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e das iniquidades: criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da confusão entre imunidade, impunidade e corrupção. Não passarão sobre os juízes e as juízas do Brasil”.

Os ministros do STF tiveram o orgulho atingido pela vaidade excessiva do senador, que prometeu ainda procurar uns amigos no Supremo para relaxar a prisão de Cerveró.

O outrora intransigente PT, quando o assunto era corrupção, tentou botar panos quentes. Só dois senadores dos 13 que compõem a bancada do partido, o gaúcho Paulo Paim e o baiano Walter Pinheiro, estavam entre os que decidiram que o voto deveria ser aberto, e não secreto, e votaram a favor da prisão do companheiro: 59 a 13 pela prisão de Delcídio.

“Apesar de as provas que chegaram aqui, todos os senadores, tanto da base como de oposição, reconhecem que as provas são contundentes. É grave o que está ali”, disse Paim, usando corretamente o adjetivo. “Foi duro, mas foi acertada a nossa posição”, desabafou Pinheiro, externando o sentimento geral de tristeza e constrangimento.

Constrangimento porque a prisão de Delcídio ameaça outros senadores igualmente envolvidos com problemas na justiça, como Jader Barbalho, Fernando Collor e o próprio presidente Renan Calheiros, aos quais se juntaram os nove do PT que não queriam a prisão do companheiro. Na bancada petista houve duas ausências, contando o próprio Delcídio.

Rui Falcão, o presidente do PT, não o defendeu, pelo contrário. “O PT não se julga obrigado a qualquer gesto de solidariedade”, disse, em nota. Questionado sobre a diferença de tratamento dispensado ao ex-tesoureiro João Vaccari Neto, já que ambos presos no âmbito da Operação Lava Jato, disse que tem uma diferença clara entre atividade partidária e não partidária.

Mas Vaccari não foi condenado pela Justiça por corrupção e lavagem de dinheiro? Ah, é porque ele teria desviado recursos de contratos de obras da Petrobras para abastecer o caixa do partido e não o próprio bolso. Essa é a diferença?

Mais cínico talvez tenha sido o ficha-suja Paulinho da Força, que recentemente afirmou defender o sujo e mal lavado milionário Eduardo Cunha porque sem ele não tem impeachment da Dilma. Pouco importa se o presidente da Câmara é um fora da lei. E Paulinho não está sozinho, muito pelo contrário.

A exemplo de Cunha, aquele que enriqueceu vendendo carne enlatada para a África, o petista com DNA tucano Delcídio já encontrou uma desculpa esfarrapada para se defender das provas irrefutáveis contra ele.

E assim como o governo Dilma finge ainda enxergar legitimidade em Cunha, temendo exatamente o impeachment, a maioria da bancada petista no Senado finge acreditar nos interesses humanitários do senador sul mato-grossense.

Senador que um dia foi nomeado por FHC diretor de Gás e Energia da Petrobras, onde conheceu os hoje delatores Paulo Roberto Costa e Nestor Cerveró. De lá para cá, afeiçoou-se muito aos interesses que cercam o petróleo.

Em tempo: dois anos atrás, André Esteves pagou a lua de mel do escrupuloso Aécio Neves em Nova York.

Marcos Cardoso é jornalista, editor do Caderno Mercado do Jornal da Cidade, e autor de “Sempre aos Domingos: Antologia de textos jornalísticos. 

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