Por Afonso Nascimento *
A ditadura militar (1964-1985) foi uma ordem política autoritária que engendrou contra si dois tipos de resistência, a saber, a resistência democrática e a resistência armada. Interessa-nos aqui tratar da resistência armada realizadas organizações de esquerda que acreditavam poder derrubar o regime militar, tendo como combustível uma forte dose de voluntarismo, leituras equivocadas da realidade social brasileira e treinamento e financiamento quase sempre externos.
As principais organizações eram a AP (Ação Popular), PC do B (Partido Comunista do Brasil), MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), ALN (Ação Libertadora Nacional) de Marighella, VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) de Lamarca, entre outras mais. Todas essas organizações foram derrotadas pelo regime militar e seus integrantes, exceções à parte, tomaram o caminho do exílio, “desapareceram” para sempre, conheceram a tortura e a morte nos porões da ditadura e nas lutas urbanas e rurais.
Para a derrota dos grupos radicais armados, o regime militar contou com um desproporcional conjunto de recursos materiais (todas as forças armadas estatais) e de recursos humanos que fez da luta armada parecer, embora hipervalorizada pela ditadura em termos de ameaças à ordem política, uma temporada de caça a seres humanos sem chances de qualquer vitória sobre os militares. Um desses recursos foi a infiltração de quadros do regime militar no interior das organizações da esquerda armada. É aí que entra o Cabo Anselmo, agente duplo infiltrado em organizações clandestinas que entregava militantes às forças da repressão para o desaparecimento, a tortura e a morte. Calcula-se que ele tenha nas costas entre cem e duzentos mortos. Afinal, quem foi esse alcaguete chamado Anselmo, indivíduo ainda vivo e morando em algum lugar no interior de São Paulo?
Cabo Anselmo é um sergipano nascido em Itaporanga d´Ajuda, em Sergipe e que, em 2018, completa setenta e seis anos. Sua origem social está nas classes populares, o que pode ser deduzido do fato que, apesar de chamado de cabo, não passava do equivalente a um soldado raso. Mas isso não importa pois o apelido pegou. Na sua certidão de nascimento só consta o nome de sua mãe que, com ele, se mudou para a cidade do Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Sabe-se também que chegou a estudar Direito por algum tempo, o que significa dizer que tinha feito a escola secundária.
O seu nome está associado à ditadura militar por duas razões. Em primeiro lugar, foi o Cabo Anselmo o líder da rebelião dos marinheiros em março de 1964, no Rio de Janeiro, acontecimento que servirá de pretexto para o golpe militar daquele ano. Com sua rebelião, os marinheiros quebraram a hierarquia e a disciplina tão prezadas pelas forças armadas. Bom orador, Cabo Anselmo se transformou, de uma hora para outra, numa figura conhecida nacionalmente e o seu nome virou passagem obrigatória para os estudiosos do golpe de 1964, geralmente ligado ao discurso do presidente João Goulart, na Central do Brasil, no mesmo mês. Com o golpe, Cabo Anselmo foi expulso da Marinha e, sobre essa etapa de sua vida, questiona-se se ele já era um agent provocateur a serviço da CIA – o que é negado por ele.
No período que vai de 1964 a 1967, desligado da Marinha, o Cabo Anselmo desaparece, se aproxima da AP, se asila na Embaixada do México e finalmente é preso (com ou sem aspas). Em 1967, “foge” da cadeia ajudado pela AP e chega a Cuba para fazer treinamento para a luta armada. Em território cubano tem contato com outros candidatos a guerrilheiros que lá estavam com os mesmos objetivos. Em 1970, está de volta ao Brasil -e aqui entra a segunda razão -, quando passa a trabalhar como alcaguete dos órgãos de repressão. Seu nome então é Jadiel e depois será Jônatas, Kimble e Daniel. Busca contato com o capitão Lamarca da VPR, organização em que passa a atuar, chegando ao posto de um de seus dirigentes nacionais. Depois de preso em São Paulo pelo tenebroso delegado Fleury é quando se torna um agente infiltrado, segundo ele, porque essa era a única escolha para poder sobreviver.
Homem frio e calculista, o Cabo Anselmo sobreviveu entregando nomes, pessoas, senhas, aparelhos, endereços e “pontos” (lugares de encontros) da VPR e de outras organizações. Fazia isso, não por idealismo ou como serviço voluntário, mas como trabalho remunerado, com o que ganhava salário equivalente ao de um capitão, com contrato e recibos de pagamentos. Ele era aquilo que os órgãos de repressão chamavam de “cachorros”. Não era o único, naturalmente. Havia mais “cachorros” que faziam parte de outros órgãos de repressão infiltrados em organizações de luta armada.
Pessoas que militavam na clandestinidade e que tiveram o azar de se aproximarem do alcaguete sergipano ou que tiveram contato com ele quase sempre conheceram o mesmo destino: prisões, torturas, desaparecimentos e mortes. A despeito da cirurgia plástica que fizera no rosto e de seu carisma como suposto militante, integrantes dos grupos armados desconfiaram dele e ele foi submetido a três julgamentos no Chile, onde estavam exilados da luta armada brasileira. No terceiro deles, tomou a iniciativa e entregou o seu revolver para aqueles que dele desconfiavam o matassem. Ninguém teve a coragem necessária para tanto.
Do Chile voltou ao Brasil para liderar um grupo de luta armada para sua organização em Recife. Entre os membros dessa nova turma estava uma mulher chilena com quem o Cabo Anselmo tinha um romance e que estava grávida de filho dele. O resultado é que esse foi mais um grupo desmantelado pelos órgãos da repressão, sendo todos mortos, à exceção dele e de outro infiltrado. Sobre isso também existe polêmica. Há uma versão que diz ter ele pedido ao delegado Fleury para poupar a sua mulher chilena e tem outra que afirma o contrário. Com o fim da luta armada contra a ditadura militar, Cabo Anselmo voltou a desaparecer.
Ele reapareceu com o fim do regime militar, especialmente no momento em que se discutia sobre indenizações para vítimas da ditadura. Ele pediu reparação monetária que cobrisse o período em que fora marinheiro até o momento em que ocorriam as indenizações, o que lhe foi negado. Em 2011, vimos a entrevista que concedeu ao Programa Roda Viva da TV Cultura de São Paulo, mostrando uma certa desenvoltura nas respostas que dava às perguntas. Em declarações que estão disponíveis na internet, a figura sinistra que é o Cabo Anselmo diz que não se arrepende de nada. Sem mais comentários.
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Livros consultados para este texto:
BORBA, Marco Aurélio. Cabo Anselmo: a luta armada ferida por dentro. São Paulo: Global Editoria,
1981.
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada: as ilusões armadas. Rio de Janeiro: Editora Intrínsica Ltda, 2014.
* É professor de Direito da Universidade Federal de Sergipe e Membro da Comissão Estadual da Verdade
* Este artigo foi escrito antes da morte de cabo Anselmo, ocorrida no último dia 15, em Jundiaí, interior de São Paulo.