Por Lelê teles *
a tarde sendo.
em moto perpétuo, segue girando o dimmer celestial.
a luz da tarde, silente, vai caindo lentamente, como uma pluma que se desprega em voo.
as nuvens se revestem de um brilho brando e colorido.
é hora de regar as plantas.
da varanda, vejo um anjo que passa, pássaramente.
eu o saúdo com sorridente cordialidade, acenando com a mão.
a criatura saudou-me de volta, com um elegante menear de asas, como saúdam os anjos.
como vais?, perguntei.
“voo voando; respondeu com formalidade angelical, interrompendo o movimento.
“o que houve?”, inquire-me a alada criatura.
“ouço o vento em silvos, a eloquência do silêncio e a música suave dos astros em movimento”, devolvi.
ele se aproximou e pairou no terceiro andar, onde estou, num imóvel movimento, girando freneticamente as asas.
prossegui, regador em punho, deitando água em chuva nas flores e ervas.
“marte, saturno, vênus, plutão… sabiam que todos esses já firam eivindades um dia, nã longínqua grécia? hoje são apenas topônimos, nomeando planetas que, embora estejam no firmamento, não estão no céu…”
como nenhum assunto é estranho a um anjo, ele disse: “flagrante deicídio. mataram todos os deuses visíveis, em nome do deus invisível, indizível é indivisível”.
interrompi:
“quem mata também morre. já pensou se um dia, uma outra civilização nos trouxer uma outra divindade e, esta, substituir esse nosso deus vigente.
“aí, então, os descobridores descobrirão um novo planeta e darão a ele o nome de deus, e deus ficará pregado lá em cima, depois do último planeta, invisível a olho nu; sem vento, sem gravidade, sem plantas nem animais, sem graça e sem vida.”
só ouvidos, o anjo esticava a língua e lambia o botão das flores.
“até que alguém, metido numa gravata, anunciará no noticiário: “grande dia. cosmonautas russos, à bordo da nave komsomolskaya, acabam de adeuzizar. finalmente o homem chegou a deus, o mais longíquo planeta do sistema solar; já enfiaram-lhe uma estaca com uma bandeira e começam a escavar o seu solo, para colher amostras e trazê-las à terra. ainda não se sabe do que deus é feito”.
o anjo, numa estranha mecânica de asas, fazia lépidos rodopios…
então, deu uma volta pelas plantinhas e acenou-me em despedida.
“tu, como te chamas?”, gritei.
“chamam-me colibri, eu nunca me chamei, nunca foi preciso, porque sempre estou comigo”.
do céu, agora, caem leves gotas de chuva; lágrimas de nuvens.
palavra da salvação.
* Formado pela Universidade de Brasília, Lelê Teles é jornalista, roteirista e publicitário. É roteirista do programa Estação Periferia (TV Brasil) e da série De Quebrada em Quebrada (Prodav 09). Sua novela, Lagoas, foi premiada na Primeira Bienal de Cultura da UNE. Discípulo do Mestre Cafuna, prega o cafunismo, que é um lenitivo para a midiotia e cura para os midiotas.