Josué Modesto dos Passos Subrinho*
Ailton Aquino dos Santos, funcionário de carreira, assumiu recentemente o cargo de Diretor de Fiscalização do Banco Central do Brasil. A imprensa ao divulgar a promoção, uma dessas rotinas burocráticas que só comovem os diretamente envolvidos, chamou a atenção para uma singularidade: era o primeiro negro a alcançar esse relevante posto nos quase sessenta anos da instituição. Homenageado na Universidade Estadual da Bahia, Ailton Aquino dos Santos, disse:
“Sou do vestibular de 1994, como qualquer menino do interior da Bahia. Por isso, ressalto a importância de uma universidade estadual, pública e gratuita. Um menino de Jequié, que tinha o sonho de fazer o ensino superior. Acho algo fundamental na vida de todos nós, e a Uneb me propiciou isso”. O hoje diretor do Banco Central saiu do interior da Bahia, aos 17 anos, para estudar Ciências Contábeis no Campus da Uneb, em Salvador, num passado de dificuldades. “Vim de uma família pobre e sempre estudei numa escola pública. À noite, como qualquer aluno pobre do interior da Bahia. A caminhada na Uneb foi muito importante na minha vida.”
Os obstáculos que Ailton Aquino dos Santos superou até chegar ao posto que hoje ocupa são impressionantes e interrompem inúmeras trajetórias, mesmo as que são impulsionadas por sonhos compartilhados por incontáveis jovens. Racismo, pobreza, escolas precárias, professores desalentados e/ou improvisados, o conformismo confundido com bem-viver, a distância física e institucional das escolas de nível superior, a falta de referências de sucesso etc. Tudo parecia conspirar contra o sucesso do jovem estudante. Mas antes mesmo de chegar a Salvador e no ensino superior, ele já era um herói. Concluir a educação básica na idade certa, 17 anos, com a bagagem que ele carregava era um feito notável.
O amargo contraponto a esta edificante trajetória foi uma matéria publicada no Jornal Folha de São Paulo, em 12.08.2023, com o título: “Brasileiro pobre precisaria viver nove gerações para chegar à classe média.” A abertura da matéria apresenta a história de um outro vitorioso, um empreendedor que ascendeu da pobreza `a classe média alta, através do comércio, em São Paulo, e se orgulha de poder pagar uma escola privada para o filho, na expectativa de consolidar seus descendentes nos estratos sociais distantes da pobreza.
A matéria da Folha de São Paulo repercute o estudo da OCDE, intitulado “A broken social elevator? How to promote social mobility” (Um elevador social quebrado? Como promover a mobilidade social). O estudo conclui que os países europeus com maior tradição na promoção do bem-estar social, a exemplo de Dinamarca, Noruega, Finlândia e Suécia apresentam as melhores condições de mobilidade social. Na Dinamarca, por exemplo, seriam necessárias duas gerações para que os descendentes de uma família provinda dos 10% mais pobres atingisse a renda média do País. Nos demais países nórdicos, 3 gerações, nos Estados Unidos, 5 gerações, na Índia e China, 7 gerações e, finalmente, no Brasil e África do Sul, 9 gerações. No estudo, o único país com situação pior que a brasileira é a Colômbia, onde seriam necessárias 11 gerações.
A mobilidade social é favorecida por muitas condições: a intensidade do crescimento econômico, o montante de empregos gerados, as políticas tributárias e de gasto público redistribuindo renda e, finalmente, a universalização, qualidade e equidade propiciadas pela educação pública.
Apesar da proximidade em idades, os dois cidadãos vitoriosos, o baiano e o paulista, têm avaliações distintas sobre a escola pública: um a reverencia como alavanca para sua trajetória, o outro silencia sobre sua escolarização, mas celebra poder manter o filho em uma escola privada.
Se as metas de universalização de acesso, de construir ensino de qualidade com equidade contidas no Plano Nacional de Educação fossem alcançadas, as chances de ascensão social dos mais pobres, moradores da zona rural e das regiões menos desenvolvidas, dos pretos, pardos e indígenas seriam maiores. O acompanhamento da execução do Plano comprova as dificuldades sentidas pela maioria, tornando o sucesso de poucos uma medida do quanto ainda falta para cumprir as melhores expectativas acerca da educação pública. Apresentaremos alguns dados colhidos do Relatório do 4º. Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação. 2022. Longe de exaurir os dados publicados, nossa pretensão é apenas ilustrar as dificuldades de acesso, permanência e adequada aprendizagem para segmentos sociais que representam a maioria da sociedade brasileira.
A primeira meta do Plano Nacional de Educação diz respeito à Educação Infantil, com dois indicadores: universalizar até 2016 a matrícula na Pré-Escola das crianças de 4 e 5 anos de idade e atingir metade das crianças matriculadas em creches até o ano de 2024.
O Quadro 1 demonstra como são diversificadas as possibilidades de acesso à creche. Na zona rural é praticamente metade do percentual de matrículas da zona urbana, na Região Sul o percentual está se aproximando da meta e na Região Norte está muito distante, os Brancos têm um percentual de atendimento mais elevado do que os Negros e, finalmente, os 20% dos mais ricos já atingiram, em 2019, a meta fixada para o ano de 2024, enquanto os 20% mais pobres estavam muito distantes da meta e provavelmente continuarão assim até o prazo final do Plano Nacional de Educação.
O Quadro 2 mostra a distância que estamos de alcançar a universalização da pré-escola, cujo indicador deveria atingir 100%, em 2016. No ano de 2019, o único recorte que se aproximava da universalização era do dos 20% mais ricos da população, com 98,4% das crianças matriculadas enquanto entre os 20% mais pobres apenas 92,1% das crianças estavam matriculadas. O aspecto regional apresenta um ponto positivo, a região Nordeste tinha o melhor percentual de crianças matriculadas, apesar de ainda não ter atingido a universalização enquanto a região Norte, que também apresenta condições socioeconômicas precárias, é a que têm o menor percentual de matrícula. Repete-se o menor atendimento para os mais pobres e para os negros.
A Meta 2 do Plano Nacional de Educação diz respeito a universalização do Ensino Fundamental e têm dois indicadores. O primeiro diz respeito à matrícula. Neste aspecto, apesar de haver diferenças entre os recortes que estamos abordando, elas são pequenas. Para não sermos exaustivos, privilegiaremos o indicador pessoas de 16 anos de idade com pelo menos o Ensino Fundamental concluído, lembrando que o PNE estabeleceu para este item, no mínimo 95%.
Enquanto os 25% mais ricos praticamente já atingiram a meta de conclusão do Ensino Fundamental, mostrando que a universalização, para esse segmento é efetiva, entre os 25% mais pobres apenas 67% dos estudantes, com 16 anos de idade haviam concluído o Ensino Fundamental. Repete-se o padrão de piores desempenhos para a Região Nordeste comparada com a Região Sudeste, da população rural comparada com a população urbana e dos negros quando comparados com os brancos. Ou seja, mesmo numa etapa da Educação Básica onde as condições de acesso parecem favoráveis, a permanência e aprendizagem não estão garantidas, especialmente para os estratos tradicionalmente excluídos.
A meta 3 do Plano Nacional de Educação tem dois indicadores. O primeiro diz respeito a escolarização da população com idade entre 15 e 17 anos. De uma maneira geral, as diferenças observadas nos critérios que temos seguido são mantidas, porém sem grandes divergências. Por uma questão de brevidade privilegiaremos o indicador percentual da população de 15 a 17 anos que frequenta o ensino médio ou possui a educação básica completa. O objetivo é atingir uma taxa líquida de matrícula de 85% no ano de 2024.
Como se pode ver no Quadro 4, o Ensino Médio reforça o caráter seletivo já presente no Ensino Fundamental, não obstante a universalização deste. Acesso não garante sucesso, mas no caso do Ensino Médio, o próprio acesso já está enviesado pelos critérios tradicionais de exclusão. A população da zona rural tem menor acesso ao Ensino Médio quando comparada com a população urbana, na Região Norte o acesso é menor do que na Região Sudeste, a população negra tem quase 10 pontos percentuais a menos de matrícula no ensino médio ou conclusão da Educação Básica quando comparada com a população branca e, finalmente, uma diferença de 30 pontos percentuais separam os 25% mais ricos (que já atingiram a meta de ao menos 85% de matrícula no Ensino Médio ou conclusão da Educação Básica) dos 25% mais pobres.
A meta 8 do Plano Nacional de Educação é atingir até o ano de 2024 uma escolaridade média de 12 anos de estudos da população de 18 a 29 anos de idade e, principalmente, que esse marco seja atingido nos diversos recortes abordados. Conforme podemos ver no Quadro 5, a meta já foi atingida pela população urbana, mas não pela população rural, na Região Sudeste a meta foi atingida, mas não na Região Norte. Os brancos atingiram a meta, mas não os negros. Os 25% mais ricos superaram a meta, mas os 25% mais pobres estão longe de alcançar a meta.
Em síntese, a educação pública brasileira que tem se expandido fortemente nos últimos anos, chegando a populações mais pobres tanto nas áreas metropolitanas, quanto nas zonas rurais, e nas diversas regiões geográficas não consegue ser um fator estrutural de redução das desigualdades sociais, de aceleração da mobilidade social. Antes pelo contrário, mesmo com algum progresso na diminuição das distâncias entre os diversos recortes, interrompido recentemente pelos efeitos da pandemia da COVID 19, persistem as diferenças de oportunidade de acesso, no caso da Educação Infantil, para os mais pobres, os negros, os moradores da zona rural e os residentes nas regiões com maiores carências socioeconômicas, como o Norte e Nordeste. No caso do Ensino Fundamental, onde o acesso está se aproximando da universalização, o sucesso, isto é a conclusão da etapa na idade prevista, reproduz a desigualdade. Novamente os mais pobres, os negros, os moradores da zona rural e os residentes nas regiões Norte e Nordeste têm menores êxitos. A consequência é a maior dificuldade desses segmentos em acessar, permanecer e concluir com níveis adequados de aprendizagem o Ensino Médio. A consequência é a maior dificuldade de acesso aos melhores postos do mercado de trabalho, reproduzindo infinitamente os círculos de pobreza.
Estamos iniciando um novo ciclo que deverá produzir um novo Plano Nacional de Educação. Novas metas e mecanismos de acompanhamento, aproveitando a experiência adquirida com a implantação e acompanhamento do Plano vigente entre 2014 e 2024, devem ser desenhadas. O FUNDEB de caráter permanente, delineado pela Emenda Constitucional 108/2022, regulamentado pela Lei N. 14.113/2022, está em implementação e revisão. O Sistema Nacional de Educação está tramitando no Congresso Nacional e o atual Governo Federal está comprometido com uma agenda educacional reconhecida pelos educadores, o que não a isenta de discussões acirradas e controvérsias aparentemente infindáveis. Ou seja, do ponto de vista do sistema de educacional as probabilidades de avanços são consideráveis. Restam questões complexas de conectar os avanços educacionais com as políticas sociais e com o desenvolvimento econômico, sem as quais a mobilidade social se restringe aos exemplos excepcionais que produzem belas singularidades, mas não mudam a sociedade.
[1] Educação Pública me permitiu chegar aqui, diz novo diretor do BC. Wellton Máximo. Agência Brasil. 16.08.2023.
* Ex-reitor da Universidade Federal de Sergipe (2004-2012) e ex-reitor pró-tempore da UNILA (2013-2016). Ex-secretário da Educação de Sergipe (2019-2022). Coordenador do Laboratório de Políticas Públicas Manoel Bomfim (UFS).
Como citar este artigo: Josué Modesto dos Passos Subrinho. Educação e mobilidade social no Brasil: diferenciações entre a população branca e negra. Saense. https://saense.com.br/2023/09/educacao-e-mobilidade-social-no-brasil-diferenciacoes-entre-a-populacao-branca-e-negra/. Publicado em 14 de setembro (2023).