Por Shis Vitória *
Atividade produtiva responsável por mobilizar pouco mais de 700 famílias com exclusividade para a cata do fruto, a mangaba ocupa protagonismo no movimento empreendedor no estado de Sergipe. Marcado por um público empreendedor feminino, todo o ciclo de plantação, cultivo e comercialização da Hancornia speciosa – seu nome científico –, contribui para que a menor Unidade Federativa do país mantenha-se de forma isolada como o território geográfico com a maior produção na América Latina. No Brasil, Sergipe e Paraíba respondem por 90% de toda a produção. A sua importância, sobretudo para o movimento econômico do estado, sobrepõe com larga vantagem outra fruta comum, o caju; pomo que está presente no nome da capital, Aracaju.
Paralelo ao consumo do lazer, por intermédio de suco, sorvete, bebidas alcóolicas e múltiplas receitas presentes na gastronomia, a mangaba desponta como composição base para a indústria farmacológia. Estudos científicos identificaram que a existência de duas misturas de triterpenos, uma delas composta por α-amirina, β-amirina e lupeol e a outra por seis ésteres 3-β-O-acil lupeol, do látex do seu fruto, permite que laboratórios desenvolvam produtos antioxidante, antialérgico, anti-inflamatório, antitumoral, antibacteriano, efeitos gastroprotetivos e hepatoprotetivos. Pesquisas desenvolvidas por técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA), apontam para 2.500 toneladas produzidas a cada ano em Sergipe. Unindo-se aos demais estados da Região Nordeste, esta atividade ultrapassa 98% da produção no país.
Diante desta representatividade social, empreendedora e econômica, neste início de século XXI leis estaduais estão sendo aprovadas em Casas Legislativas com a perspectiva de impulsionar o reconhecimento, bem com aplicar medidas voltadas em políticas públicas capazes de preservar comunidades ribeirinhas envolvidas em maior escala na prática do extrativismo. Reconhecida como bem integrante do patrimônio cultural imaterial brasileiro, nos termos do que prevê o artigo 216, II, da Constituição Federal, este movimento empreendedor é amparado pela lei de nº 288/2010, aprovada na Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe (Alese), a qual reconhece as catadoras de mangaba como comunidade tradicional. A utilização sustentável dos recursos da biodiversidade é sinônimo de orgulho para o povo sergipano.
As catadoras de mangaba se concentram em maior número nos municípios de Aracaju, Barra dos Coqueiros, Pirambu, Japaratuba, Estância e Indiaroba; todas organizadas em associações que atuam como instrumento de defesa e de promoção da cata, do processamento e da comercialização da fruta como fonte de renda e garantia de segurança nutricional para essas comunidades. Dentro destas comunidades, há, com destaque, distribuição solidárias para famílias carentes e unidades que atendem pacientes cadastrados no Sistema Único de Saúde (SUS). Integrante da associação localizada em Indiaroba – distante a 102 km de Aracaju –, em diálogo com a nossa equipe do Destaque Notícias, Maria Selma Lourenço dos Santos revelou que turistas apresentam curiosidade sobre o gosto da mangaba, mas depois do primeiro contato aprovam com satisfação.
“Posso te garantir que há pelo menos três gerações da minha família e nós devemos muito à colheita de mangaba em nossa cidade,
porque o sustento dos meus avós, dos meus pais e dos meus filhos vem dessa fruta. Tenho três barracas e em todas eu costumo ter um pote com suco para experimentação, e um cardápio já com QRCode para que as pessoas possam escolher uma das receitas. Minha paixão pela mangaba está ligada a um significado especial: é dessa venda que eu consigo pagar por uma educação básica melhor para meus dois filhos”, declarou. As três barracas estão localizadas na Rodovia dos Náufragos, zona de Expansão de Aracaju; no mercado Augusto Franco, centro da capital; e no município da Barra dos Coqueiros.
Questionada sobre a manutenção do ciclo familiar na plantação e comercialização da fruta, Maria Selma comentou que os filhos – em fase preparatória para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) –, apresentam indícios de buscar conhecimento profissional nas áreas da engenharia agronômica e gastronomia.
“Está no sangue. O mais velho, de 16 anos, já me disse que quer ser engenheiro para melhorar o preparo do solo, pensando na melhor qualidade da fruta que pra mim já é perfeita; o mais novo, de 14 [anos], disse que gosta de cozinhar, e gosta mesmo, e quer preparar receitas com mangaba, palma, mandioca, caju. Eu vejo brilho nos olhos deles e a fonte desse brilho é justamente a mangaba”, completou.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, a cada ano esta produção no país é de aproximadamende 1,8 mil toneladas; por se tratar de uma árvore adequada ao clima tropical, ela é encontrada em poucos hectares na Bolívia, Paraguai e Peru. Integrantes da Associação das Catadoras de Mangaba e Indiaroba (Ascamai), primeira associação de Catadoras de Mangaba registrada em Sergipe, criada em 23 de maio de 2009, defendem a manutenção das ações governamentais como forma de garantir a renovação sustentável das áreas de plantação. De igual modo à Ascamai, as demais associações foram fundadas em Sergipe com o propósito de organizar as mulheres extrativistas tradicionais da mangaba para, através da organização coletiva, produzir e conservar essa cultura com práticas sustentáveis em respeito ao meio ambiente, promovendo o desenvolvimento socioeconômico e gerando de renda.
Todo o trabalho social, sustentável e empreendedor das famílias envolvidas conta com o apoio de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe (UFS), do Movimento das Catadoras de Mangaba (MCM), do próprio Sistema de Produção de Mangaba para a Região Nordeste – desenvolvido pela Embrapa, além de técnicos da Petrobras e do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), por intermédio do manual intitulado: ‘Iniciando um pequeno grande negócio agroindustrial: polpa e sulco de frutas’. Este acompanhamento profissional tem como missão ampliar o desenvolvimento de competências socioprofissionais, numa perspectiva de educação para o trabalho enfatizando a valorização dos usos tradicionais e saberes da sociobiodiversidade em áreas urbanas e da restinga sergipana.
Na concepção da produtora e comerciante Edjane Santos, o conhecimento básico foi herdado pelos pais, mas a implantação de técnicas de armazenamento do fruto e comercialização foi adquirida após participação em cursos e palestras. “No início a gente fica meio sem querer ir, achando que já sabe de tudo, mas é impressionante chegar a conclusão de que precisava aprender mais. Na associação nós aprendemos melhor a cuidar da terra e melhor guardar a mangaba para não perder logo, porque ela é bem frágil quando está madura ou amadurecendo. Pelo Sebrae aprendemos a abranger nossas vendas e não ficar somente em feiras livres e mercados centrais. O uso das tecnologias tem ajudado nessa expansão do comércio. Hoje, minha família não produz muito se comparado a quem tem muita terra, contudo é o suficiente para vender aos estados de Bahia e Alagoas”, pontuou.
Quanto ao repasse voluntário para unidades de saúde, a empreendedora revelou que esta medida tem sido adotada ao longo dos últimos anos por todas as associações. “Não existe uma obrigatoriedade do governo ou imposição de quem está administrando as associações, nós fazemos por amor ao próximo e por entender que a mangaba é vida. Não somente em hospitais ou postos de saúde; muitas vezes enviamos para creches, ou distribuímos com quem mora na rua. Neste último caso distribuímos o suco pronto. À mangaba eu dedico minha vida e para me sentir viva, também preciso usar dela como forma de acolher a quem está precisando”, reforçou.
* É jornalista (Fotos: Joel Luiz)